Este espaço é uma homenagem ao grande sociólogo e historiador Gilberto Freire criador da obra homônima. Seu objetivo é a divulgação de latinidades, africanismos e gentilidades e o desvelamento desse povo apaixonante e apaixonado denominado latino americano e suas origens.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Islã no Brasil

Na Bahia os Hauçás exerceram decisiva ascendência sobre os outros negros sudaneses, principalmente os Tapas e os Nagô e com esses grupos foram os principais responsáveis pelas sublevações de escravos no séc. XIX.  Essas violentas insurreições não tinham só caráter exclusivamente econômico, mas segundo os historiadores, tinham também aspectos religiosos envolvidos em suas causas. 

Foram os negros vindos do Sudão que introduziram o islamismo no Novo Mundo. Sua história na Bahia é das mais interessantes. O seu grupo foi relativamente pequeno, mas sua influência foi consideravelmente ampla. Provinham dos domínios africanos de Sokotô, Katsena e Kano, na Nigéria do norte. Eram altos e robustos, fortes e trabalhadores. Usavam como outros negros maometanos um pequeno cavanhaque. De vida privada regular e austera, não se misturavam com os outros escravos. Alguns pretendiam ter sangue filamin; parece porém que os desse grupo sejam mestiços com os Fulas.

Outras etnias, como os Mandingas, termo que deriva de Malinkes, isto é, naturais de Mali eram guerreiros cruéis em sua terra que tinha o hipopótamo (mani) como seu animal totem. Não obstante a influência maometana eram considerados grandes mágicos e feiticeiros, daí o sentido adquirido de mandinga como sortilégio mágico, coisa feita, despacho que os negros consagraram no Brasil.

Na Bahia, suas insurreições foram a continuação de suas lutas religiosas e de conquista levadas a cabo pelos negros islamizados do Sudão. Arrancados a força de seu continente, esses negros aguerridos, valentes conquistadores não se sujeitaram à escravidão no Brasil.

Trouxeram consigo a idéia da Jihad, a Guerra Santa, na tentativa de impor o domínio do Islã como movimento contra aculturativo em oposição aos seus senhores brancos e contra outros negros e mestiços que   não adotassem a verdadeira fé e aderissem ao seu movimento.

Seus locais de reunião eram os templos maometanos onde a difusão da sua fé atingiu seu auge na metade do séc. XIX. Seus chefes eram os Alufás ou Marabus, que exerciam absoluta autoridade sobre os subordinados. Os documentos apreendidos na insurreição de 1835  escritos em caracteres árabes, eram mandingas contendo Suras do Alcorão, palavras e rezas cabalísticas.

Onde negros Hauçás existiam a revolta era latente. Depois da revolta de 1813, quando foram quase totalmente massacrados pelos brancos e os sobreviventes deportados para a África tornaram-se em número reduzidíssimo. Mesmo assim unidos aos Nagô e a outros grupos não cessaram suas atividades revolucionárias. Os Tapas islamizados, chamados também de Nifês ou Nupês foram os que mais se fundiram aos remanescentes Hauçás na Bahia, em número também reduzido empreenderam grande resistência contra o escravismo. Esses e outros grupos sudaneses conservaram seus hábitos e crenças originadas nas terras nativas porém pelo número reduzido aos poucos foram se extinguindo. Conforme informam os registros da época eram maus escravos; altivos e insubmissos, suicidavam-se e matavam os "donos" com freqüência.

Os Mandingas mantinham por mestiçagem traços dos Hamitas procedentes do vale do Nilo e pode-se inferir que eles resultam da mistura com semitas da África do Norte. Já nos fins do séc. XIX e começo do XX não existiam mais Mandingas puros, mas os termos mandinga e mandingueiro sobreviveram aos tempos com o sentido de feitiço, feiticeiro, lembanças dos amuletos e práticas mágicas desses negros maometanos.

Os Fula ( Fulah, Felatah, Fulbe, Filanin ) são considerados descendentes dos antigos egípcios, o certo é que eram pastores nômades, grandes guerreiros em sua terra, com extraordinário poder de adaptação. Assimilaram o islamismo no meio do séc. XVIII e foram um dos seus principais propagadores no Sudão. Desta fusão resultou uma grande diferenciação de feições entre essas populações e outros africanos. Muitos viajantes acreditavam tratar-se de africanos com traços europeus: cabelos menos encaracolados, feições finas, coloração mais clara da pele. Foi dessa cor da pele que no Brasil surgiram as denominações: negro fula, cor fula para designar africanos de pele mais clara, que tenham descendência Fula ou não.


Livro encontrado no pescoço de um africano morto após a revolta de 1825


A cultura maometana foi portanto introduzida no Brasil pelos negros sudaneses e hamito-semitas. Foram denominados de uma forma geral de Malês entre os brasileiros. Este termo tinha conotação pejorativa entre os verdadeiros maometanos. O termo Mulçumi é privilegiado entre os negros baianos com as corruptelas: muçulumi, muçurumi, muxurumim, muçuruhi. Seus cultos, registrados nas macumbas do Rio de Janeiro, preservavam alguns aspectos fetichistas cujas práticas estão hoje sincretizadas na fusão com outras religiões afrobrasileiras. Adoravam a Allah e a Olorun-uluá ( combinação de Olorun e Alá ). Na sua condição mais pura seus ritos não admitiam culto a imagens e a ídolos. Apesar disso não se separavam de seus talismãs; eram considerados como grandes feiticeiros, admirados e temidos pelos outros negros. Esses talismãs eram na maior parte fragmentos e inscrições em caracteres árabes de Suras (Versículos) do Alcorão, em pedaços de papel, em pequenas tábuas, ou em outros objetos que carregavam e guardavam consigo. O grão-sacerdote é chamado Lemano, Limane ou Limano (corruptela de Ulemá). É o chefe religioso supremo, senhor das práticas dos cultos e dos sortilégios. Nas cerimônias religiosas é assitido por um acólito, o Ladane ou Ladano. Os sacerdotes comuns tem a designação de Alufás, nome que no Rio de Janeiro, por extensão passou a designar os Malês. Há ainda os conselheiros e juízes, os xerifes, geralmente pessoas idosas cujos conselhos são procurados. 

Denominavam Salah a oração obrigatória, de onde provem a expressão "fazer sala" criada pelos Malês. Recolhiam-se cedo em seus aposentos evitando o sereno. Às quatro horas da manhã levantavam-se para "fazer sala" que é a oração da manhã e depois a noite. A cerimônia consiste primeiramente de  uma ablução: sem trocar palavra lavar o rosto, as mãos e a planta dos pés, fazem o banho de assento e vestem um camisão, calças e enfiam na cabeça um gorro com borla caída, tudo de algodão bem alvo. Munidos então de um rosário, o Têcêba, com 50cm de comprimento e noventa e nove contas grossas de madeira terminado com uma bola em vez da cruz. dão começo a oração de pé sobre uma pele de carneiro. Os homens colocam-se a frente e as mulheres atrás. Quando rezam pelas contas menores do rosário conservam-se sentados; passando as contas maiores levantam-se. Nesse momento, com as mãos abertas e tendo o corpo inclinado em sinal de reverência dizem: "Allah-u-acubáru", no sentido de louvar à Deus. Em seguida levantam os olhos para o alto e os baixam com uma saudação; com as mãos no joelho fazem um sinal de continência com a cabeça; proferem então algumas palavras e sentam-se de lado continuando a rezar pelas contas menores.


Quem podia executava esse ritual cinco vêzes ao dia: o primeiro - "Açubá"; o segundo - "Ai-lá"; o terceiro - "Aà-a-sari"; o quarto - "Ali-mangariba"; o quinto - "Adixá". Finalizavam a oração dizendo: "Ali-ramudo-li-lai" (Louvor ao Senhor do Universo). Para qualquer ato que o crente tinha que praticar antecedia a expressão: "Bi-si-mi-lai" (Em nome de Deus Clemente e Misericordioso). Terminada a oração cortejavam-se uns aos outros saudando: "baricada subá" (Deus lhe dê um bom dia). O lugar da casa onde faziam sua prática religiosa chamava-se "ma-ça-la-si" (oratório).


Apesar da proibição no Brasil colonial ao seu culto islâmico, os Malês mantinham suas práticas  mágicas, evocando espíritos (aligenun=daimon). Costumavam invocar o poder mágico de seus talismãs escrevendo em uma tábua de madeira e lavando-a depois com água para infundir a quem a bebesse virtudes poderosas. Dependurados ao pescoço traziam ainda orações com o "Selo de Salomão" inscrito acondicionados em uma bolsa que protegia seu portador contra os feitiços. Na privacidade de seu lar mantinham os restritos preceitos do Alcorão. 


Em Salvador, a ladeira do Taboão, o largo do Pelourinho, a ladeira do Alvo foram os redutos preferidos de Hauçás islamizados. Conservavam suas indumentárias nativas na vida privada: a túnica branca (o abadá ou camisú), o gorro (filá) de onde pende longa faixa branca. Suas mulheres usavam turbantes, panos da costa vistosos, saias rendadas, chinelinhos, que passaram a caracterizar o tipo da "baiana".


Observavam a circuncissão (Kola) que praticavam aos dez anos de idade. Só não podiam realizar a peregrinação à Meca. Mas não esqueciam a época do jejum anual ( o Ramadã ) que denominavam "Assumy". O jejum coincidia com a festa do Espírito Santo dos católicos e durava toda uma lunação. O tabu alimentar era rigorosamente observado durante o período. Só comiam inhame cozido com azeite de dendê, arroz pisado com água e açúcar, ou leite e mel de abelhas. As refeições  eram feitas às 4 horas da madrugada e às 8 horas da noite. Terminavam o jejum com uma grande festa que chamavam Saká. Sacrificavam neste dia um carneiro, e culminava a festa com uma Salah pública em que trocavam presentes.


Isolados, altivos e insubmissos, reagiram à escravidão. Promoveram freqüentes revoltas e odiavam  seus próprios companheiros de infortúnio, não maometanos, e aos brasileiros mulatos que consideravam inferiores. Com exceção de certos aspectos religiosos, a cultura afro-maometana não criou raízes autônomas no Brasil. Os massacres, as punições e as deportações condenaram seus, cada vez menores, grupos étnicos ao progressivo desaparecimento em seu estado puro, bem como o choque cultural com os costumes da colônia, bem mais permissivos entre as populações mais simples que desviaram as gerações posteriores dos rigorosos costumes de seus antepassados escravos. Restam apenas algumas sobrevivências, as linhas Muçurumim das macumbas cariocas e outros ritos na religião afrobaiana.   

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