Este espaço é uma homenagem ao grande sociólogo e historiador Gilberto Freire criador da obra homônima. Seu objetivo é a divulgação de latinidades, africanismos e gentilidades e o desvelamento desse povo apaixonante e apaixonado denominado latino americano e suas origens.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

FANTASMAGORIAS DE UMA FALSA TRADIÇÃO





I
COMO VESTES TUAS GLÓRIAS 
SENHORES DE CASTELA
TEU IMPÉRIO ATINGE
TODO O SOFRIDO CONTINENTE.
O IRMÃO DO ÍNDIO,

GUARDA FIEL TEU TESOURO
COM SEUS METAIS FORJAM-SE
AS ARMADURAS DO VICE-REI.
NEGROS ESCRAVOS ACORRENTADOS
CORTAM TRILHAS NA SELVA BRUTA
O SAQUE FOI DIVIDIDO
ENTRE OS CORSÁRIOS
QUE SEMEIAM MORTE E DOENÇA
AO GENTIO INCULTO

II

A CRUZ ELEVA-SE 
DO SOLO DA MISSÃO
AS FLAUTAS E O CANTOCHÃO
PERCORREM OS MUROS DA CIDADELA.
CAVA O OCASO NESTE MOMENTO DE GLÓRIA
AO DEUS BRANCO QUE TUDO VÊ!
FLAUTAS, APITOS
MARCA RITMO O TAMBOR SINCOPADO.
DESTA DANÇA DA FERTILIDADE
AO SOL QUE MORRE
ATRÁS DA GRANDE ÁRVORE ANCESTRAL
FILHA DO ASTRO, PROTETORA DA TRIBO
MILENAR MEMÓRIA SEDENTÁRIA,
TUA SOMBRA AINDA COBRE A CRUZ FINCADA
MESMO O DEUS BRANCO REVERENCIA
A TUA GLÓRIA PASSADA DE DEUSA.

III

DO OUTRO LADO, AO LONGE
O SOL VEM TOCAR ARMADURAS E LANÇAS
NESTE ÚLTIMO RAIO, SUSPIRO,
BRILHO MORTAL,
QUE MANCHA DE SANGUE O CÉU.
VOAM AO SEU ABRIGO,
OS SERES ALADOS,
NO FIM DE MAIS UMA TRÉGUA

O RELINCHAR DOS CAVALOS,
O TROPEL DOS PIQUETES,
SOA O ALARME DA SENTINELA.
CLARINS E TAMBORES,
ANUNCIAM O ATAQUE DOS INFANTES
MAMELUCOS, PÉS DESCALÇOS,
MERCENÁRIOS SUJOS, MALTRAPILHOS,
VESTINDO UNIFORMES DA COROA
SEDENTOS DE OURO E GLÓRIAS .

IV

OS GUERREIROS DA CIDADELA
PREPARAM SUA DEFESA
MONTAM SEUS GINETES,
AS LANÇAS EM RISTE,
BENZE O PADRE JESUÍTA.  
A ADAGA
REZAM A ÚLTIMA PRECE
JUNTO Á IMAGEM DA VIRGEM.
MULHERES E CRIANÇAS BUSCAM REFÚGIO
NA VELHA MATRIZ.
TROAM OS CANHÕES,
CHOVE BOMBARDA.
O ALTAR MOR RACHA
DESPROTEGIDO 


V

OS CAVALEIROS INVESTEM EM CARGA,
COM SEUS COLORIDOS ESTANDARTES,
SEGUE ATRÁS A TURBA
COM SEUS GRITOS DE GUERRA.
SÃO MAMELUCOS, MOUROS PAGÃOS
NEGROS ESCRAVOS CARREGANDO SEUS BRASÕES
SEGUEM OS CAVALEIROS DE CASTELA,
SENHORES IMPÁVIDOS DA MORTE,
E DO FOGO DA METRALHA.
SÃO POUCOS OS BRANCOS,
PORÉM A TURBA OS SEGUE,
ESPERANDO AS SOBRAS DO SAQUE,
AS MIGALHAS DOS TESOUROS DA BATALHA.

VI

UBIRAJARA, SEPE’, ARITU,
XANGA, KALE’ E MANA’
BEIJARAM A IMAGEM DA VIRGEM,
UNTARAM SUAS FLECHAS
COM O VENENO DA MORTE,
SENTINDO NO CORAÇÃO O PESO
DERRADEIRO DA LUTA PRESENTE,
O CHEIRO DA PÓLVORA NO AR,
O ENXOFRE DO INFERNO CRISTÃO
QUE SE AVIZINHA
.
MOEMA AJOELHADA, CHORAVA QUIETA
OLHAVA SEU FILHO
AINDA NO COLO DE MANA’.
NESTA ESTRANHA CALMA
QUE ANTECEDE A TORMENTA



VI 

A SENTINELA ESPREITA AO LONGE,
DA TORRE ALTA
O INIMIGO QUE AVANÇA
A CADA PASSO DA CAÇADA,
A LINHA FLAMENGA CERCA SUA PRESA,
COMO UMA MATILHA SEDENTA.
OS CANHÕES DA CIDADELA RESPONDEM
AO FOGO VINDO DAS COLINAS.
ANIMAIS SELVAGENS PROCURAM REFÚGIO
NOS RECÔNDITOS DA FLORESTA,
ONDE O HOLOCAUSTO HUMANO
NÃO PERTURBA SEU CICLO DE VIDA.
OS GUERREIROS DE CRISTO
COM SUAS POUCAS ARMAS,
JOGAM-SE EM DERRADEIRA INVESTIDA
SEUS GRITOS DE GUERRA
PROVOCAM CALAFRIOS AO PRÓPRIO DEMO.
SEUS CORPOS, SEUS PECADOS, SUAS ALMAS
SÃO ARRANCADOS PELO CHUMBO DAS GRANADAS

O DEUS BRANCO QUE TUDO VÊ
LEVA EM PAGÃO SACRIFÍCIO SUAS ALMAS
O AÇO PURIFICA O CORPO DAS CRIANÇAS
QUE DEFENDEM AS MURALHAS.
MULHERES CHORAM, REZAM,
ARRANCAM SEUS CABELOS
NA VISÃO DA  AGONIA DA MORTE,
DE SEUS MARIDOS E FILHOS MUTILADOS
PELAS BALAS TRAIÇOEIRAS
DO CONQUISTADOR BÁRBARO.

VIII

FUMAÇA SOBE,
DA ROÇA INCENDIADA
QUANTO ESFORÇO AGONIZA
TANTO TRABALHO DE ENXADA
QUEIMA AO VENTO,
TRAZENDO O CHEIRO DA MORTE
DO FRUTO DA TERRA.
MANA’, CHEFE GUERREIRO,
CAPITÃO, CAVALEIRO,
CHORA O DESGOSTO DA GUERRA PERDIDA
CONTRA O VICE REI.
SENHOR DO FOGO QUE DESTROI
A TERRA,
SUCUBO DAS PROFUNDEZAS,
MAL DA INFERNALIDADE.

O ÍNDIO PICA A ESPORA NA MONTADA
SENTE O VENTO E A RAIVA CEGA,
O ASSOVIO DAS BALAS DOS BACAMARTES 
A DOR DAS FLECHAS ENTERRADAS,
LEVANTA AGORA A ESPADA,
VALENTE SEGUE PARA A MORTE GLORIFICADA,
PARAÍSO DO DEUS BRANCO QUE TUDO VÊ.

IX
 
CEDE A MURALHA DA CIDADELA!
ESTRONDO DA ARTILHARIA CESSA
DUZENTOS VALENTES JAZEM NA TERRA,
MOLHADA PELO SANGUE NATIVO.
AS MULHERES PREFEREM A MORTE,
QUE CAIREM NAS MÃOS DOS CARRASCOS.
OUTRAS, MATAM SEUS FILHOS,
PARA QUE SIGAM DA TERRA
SEM SENTIR A CHIBATA DO FEITOR
QUE APRISIONA.
JESUÍTAS REZAM AO REDOR
DA IMAGEM DA SANTA VIRGEM
ALUCINADA.
COM SUAS NEGRAS BATINAS
SEGUEM SUICIDAS EM DIREÇÃO AS BALAS
PROVAM A SANTIDADE DOS MARTÍRIOS

X
NA PRAÇA, A ULTIMA FRONTEIRA
NO CORPO A CORPO DA INDIADA
ENTREVERO, O BARULHO DA ESPADA,
O CHORO, A REZA VINDA DA IGREJA,
ACUDIA O DESESPERO DA PELEJA.
A COURAÇA DO TUXAUA
FLECHA MORTAL TRESPASSA
MAS ANTES DA MORTE,
COM GOLPE DERRADEIRO DE ADAGA,
MANA’, MATA MAIS UM CASTELHANO
ARREBENTA OUTRO COM A MACHADA
SEPE’ LEVA UM TIRO NO OLHO,
OUTRO NO ANTEBRAÇO,
ARITU, UM PONTÃO DE LANÇA,
KAME’, UM ESTILHAÇO.
UM POR UM VÃO MORRENDO
EM MEIO A BATALHA, DE CANSAÇO.
XANGA MATOU MAIS DE CEM
CAIU JUNTO AO RIO COMPRIDO
COM OUTROS DUZENTOS GUERREIROS,
DO CORAÇÃO SAGRADO DE CRISTO


XI

O VICE REI, DE LONGE TUDO OBSERVA
ACOMODADO EM SUA LITEIRA CHEIROSA
HOJE NÃO E’ SEU DIA
A GUERRA E’ ENFADONHA,
SUA GOTA O INCOMODA.
SONHA COM HONRAS E FESTAS NA CORTE
D’EL REI DE ESPANHA,
ONDE ERA CAVALEIRO, NOBRE, E POETA


XII

MOEMA DA TORRE ALTA
A DERRADEIRA FLECHA AVISTA
TOMBA MANÁ CHEFE GUERREIRO
SEM HESITAR, RESOLUTA,
DE CIMA DA MATRIZ VOA
ABRAÇADA AO FILHO
VOA EM DIREÇÃO AO PARAÍSO
LIVRES SEUS CORPOS TOCAM A LAJE,
SILÊNCIO.
 
A CIDADELA POR FIM SILENCIA
COM A TRÉGUA DOS MORTOS
DILACERADOS CORPOS.
AGORA A CHUVA LAVA O SANGUE
DAS RUAS, DA PRAÇA
ENQUANTO SURGE O DIA
DAS CINZAS DA VILA INSEPULTA
A PRIMEIRA MOSCA POUSA
NO CORPO MORTO DO SOLDADO
A VELHA ÁRVORE ANCESTRAL JAZ ESTENDIDA
A CRUZ PERMANECE
PARA MARCAR AS TERRAS D’EL REI
O PRIMEIRO ARIBU VOA SOBERANO
ATRAÍDO PELO FESTIM DOS CANIBAIS


FINAL

A SOMBRA DA CRUZ AINDA PERMANECE
LÁ ONDE  OS FANTASMAS DOS JESUÍTAS REZAM,
E OS ESPECTROS DOS GUERREIROS  COM SUAS LANÇAS
AINDA INVESTEM SUAS CARGAS
EM MEIO AS NOITES DE LUA CHEIA
ONDE A NAÇÃO DOS FILHOS DO SOL
PARA SEMPRE, DEIXOU DE EXISTIR.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Por onde andará Teodora a Escrava Fujona ? Teodora enfeitou-se a baiana e sumiu nas ruas estreitas de Porto Alegre.





Juvenal o tipógrafo do periódico ajustava os tipos no gabarito e olhava o texto para não sair errada a composição do reclame. Era comum ter que montar esses textos sobre escravos fujões, mas esse em especial chamou sua atenção. Não fosse o fato dele mesmo ser filho de escravos talvez ficasse indiferente sobre as tragédias que esses reclames revelavam. Fugas de desespero, suicídios, morte por inanição, torturas, sevícias que seus companheiros de cor sofriam na mão dos seus donos e que não causavam para os leitores maiores transtornos morais ou chamavam a atenção, a não ser da cobiça. Alguns reclames premiavam os que dessem informação sobre o paradeiro dos escravos fugidos, outros clamavam pelo senso de justiça, já que o escravo era um bem semovente que tinha sido subtraído de seu proprietário, como uma vaca ou um porco. Juvenal tinha sido criado em uma estância distante, era o filho do capataz, um negro forro ladino, que cobriu uma negra bossal de origem huaçá ou mandinga que quando chegou pouco falava da língua do branco. Como cria do campo, piá esperto e curioso, caiu nas graças da sinhazinha, a filha solteirona do patrão, que resolveu ensiná-lo escondido as primeiras letras e lhe emprestava os livros da grande biblioteca da estância. Assim teve oportunidade de ler Voltaire, Montesquieu, Maquiavel e muitas novelas, sumido pelas coxilhas, longe dos olhares do patrão. Quando virou rapaz foi liberto graças a intervenção da sinhazinha solteirona e para desespero do patrão que via sua criação minguar, mas que gostava de fazer os mimos da filha. Seu pai, o capataz, mandou-lhe embora da estância sem muita conversa e com uns cobres, pois não tinha serviço para negro liberto e ainda mais letrado, poderia ser morto pela peonada inculta que não via com bons olhos um negrinho metido a besta falando que nem patrão.

O inusitado do reclame chamou sua atenção, imaginou a cena da escrava fujona se esgueirando pelas ruas da cidade com esses adereços dos negros Malê, os que tinham a antiga religião trazida do continente negro. Eles diferiam dos outros, sabiam escrever com riscos e traços que os brancos não conseguiam decifrar e adoravam Alá, seu Deus, que diziam ser único. Tomavam banho com frequência e duas vezes por dia faziam suas preces escondidos. Sua mãe era assim, ele se lembrava. Era uma negra orgulhosa que olhava com desdém o pai, capataz serviçal dos brancos. No dia que seu filho foi mandado embora, pela primeira vez ele pode vislumbrar a tristeza nos olhos da mãe, que lhe deu um forte abraço e um breve da religião dela para sua proteção na jornada forçada que teria que realizar Quando chegou na capital foi difícil no inicio, tinha dormido na rua, passado fome e frio, sofrido maus tratos dos viventes, até que conseguiu trabalhar como jornaleiro para o dono de um diário vendendo exemplares na rua. Sua honestidade e a inteligência demonstrada nas letras e nas contas que sabia de cor, graças a sinhazinha, chamou a atenção do patrão que na falta do seu velho tipógrafo que tinha falecido lhe ensinou o ofício que ele aprendeu com sofreguidão como um borracho sorve a aguardente depois de uma longa abstinência. O dono do jornal tirou a sorte grande. Arranjou um profissional de primeira pela metade do pagamento do falecido.





Juvenal tinha um sonho. Queria ser repórter, um escrevinhador de artigos para o gosto da população, ser famoso como os periodistas que via entrar e sair da redação com suas camisas francesas engomadas e botões de madrepérola, as casacas caras e as bengalas encastoadas de marfim. Mas sabia que essa função era exclusiva dos brancos de boa família e com boas relações na comunidade que ganhavam a vida profissionalmente dos seus panegíricos e crônicas que enlevavam a classe dos senhores do lugar, e das poesias que tiravam suspiros das senhorinhas. Por outro lado, às vezes um artigo mal visto, uma crítica mais contundente contra o partido oposto, a publicação de algum escândalo da sociedade gerava verdadeiros conflitos e muitas vezes a morte do articulista incauto em algum duelo de pistola ou espada. Por isso o dono do diário se preocupava em não melindrar determinadas pessoas e evitar os confrontos de opinião, ficava em cima do muro, pois não queria ver seu jornal empastelado e suas caras máquinas de impressão importadas da Alemanha destruídas por mando de algum injuriado poderoso do governo ou da sociedade da capital. 



Tudo isso meditava Juvenal enquanto ia juntando com esmero as letrinhas e formando as palavras do reclame, sua maior paixão, dar forma ao caos das letras soltas que isoladas nada diziam, mas reunidas tudo explicavam. No meio de seu devaneio uma ideia brotou como que passageira, mas foi ficando persistente. Um jeito meio maluco de ser reconhecido como resenhador respeitado pelo patrão. Ia a busca de Teodora a escrava, queria saber a sua história, os motivos da sua desdita, por que havia escolhido uma vida clandestina, cheia de ameaças e perigos, a mercê do açoite que receberia, com certeza, caso fosse descoberta. Apesar de nego forro Juvenal conhecia das conversas dos colegas jornaleiros onde procurar a fujona. Quando encerrou seu trabalho vestiu a casaca pobre, puída de negro sem fortuna e foi em direção aos banhados que cercavam a urbe, onde os escravos aproveitavam as más condições do terreno para fazer pista e sumir entre as ramagens dos alagadiços formados nas ilhas e serem acoitados por outros negros forros e escravos que habitavam além dos charcos dos vários riachos que alimentavam o rio lago. Era nesses quilombos, onde a milícia chegava com dificuldade, que os negros viviam uma vida parecida com suas origens africanas. Podiam cultuar seus orixás, tocarem seus tambores e praticarem suas danças de guerra sem o olhar reprovador dos brancos. Quando os guardas faziam alguma incursão ao reduto fugiam para a mata ao aviso dos olheiros que faziam sentinela nos caminhos. Só dava para chegar até os barracos de canoa, pois eram construídos nos secos que surgiam de vez em quando no meio do alagadiço. 


Pediu ajuda para um velho barqueiro negro que conhecia as redondezas, pagou-lhe uns cobres e remaram pelos riachos, lentamente, levantando pequenas ondas que se perdiam entre as folhagens altas do lodaçal. Logo chegaram num braço de rio mais raso e ouviram um assobio que imitava barulho de pássaro. Juvenal criado na campanha sabia muito bem distinguir o piado natural do passaredo da imitação de algum vivente que só conseguiria ludibriar os brancos, sem conhecimento das coisas do mato. Pararam de remar e ficaram na escuta. Logo dois rapazes fortes, musculosos e armados de facões apareceram na margem do riacho e fizeram sinais para que se aproximassem. O velho barqueiro e Juvenal ficaram preocupados, pois viram que eles não tinham armas de fogo mas caso se aproximassem da margem ficariam ao alcance das armas brancas que com certeza os dois homens suspeitos não usavam só para cortar o mato. Como tinha que descobrir os feitos não podia se michar para aqueles dois. Disse pro velho remar em direção a eles e quando o barco encostou na margem fez uma saudação tentando não aparentar nenhum receio. 

─ Buenas, os amigos podem ajudar para nos dar uma direção ? – perguntou mostrando as mãos livres e dando mostra de boas intenções – não precisam se arrecear de mim, sou homem de bem. 

─ Vosmece tem um pouco de tabaco ? – perguntou um deles sorridente, com um olhar cobiçoso de que estava sem fumo há dias. 

─ Tenho um pouco e posso dividir com vosmece - ele tinha vindo prevenido para essa possibilidade e trouxe alguns regalos consigo para conseguir alguma pista do paradeiro de Teodora. 

─ Entaum vosmece precisa de achar o caminho de volta ? – falou desconfiado o outro 

─ Não é essa a precisão moço, procuro uma pessoa – disse Juvenal . 

Os dois imediatamente se olharam e fecharam a cara. Não era incomum capitães do mato usarem de artimanhas para enganar os negros e muitos eram ex-escravos que haviam ficado desapiedados com o tempo e tinham comprado sua liberdade com serviços de captura de escravos fugidos. Os dois ficaram desconfiados e perplexos pelos estranhos modos desse sujeito bizarro que falava como branco mas era preto que nem eles. 

─ Posso pagar – disse Juvenal insistindo 

─ Vosmece não acha que podemos tirar seus cobres agora mesmo e deixar seus corpo jogado no fundo desse banhado? – ninguém vai dá falta, branco não se arrelia com morte de preto – falou sorrindo o rapaz colocando a mão na bainha do facão atravessado na cintura, ameaçador. 

─ Quero falar com minha amiga, a negra Teodora – mentiu Juvenal temeroso de virar comida de peixe ali mesmo. 

Os dois imediatamente mudaram de expressão ao ouvir o nome da escrava fugida. Ficaram assustados com a menção do nome dela. Mudaram de comportamento, de ameaçadores a submissos, ajudaram na amarração da canoa, deixaram o velho barqueiro esperando e serviram de guia para Juvenal por uma trilha estreita até uma clareira onde alguns barracos construídos com tábuas velhas e cobertos de ramos formavam uma rua estranha, meio torta e enlameada. No fim da clareira uma choupana maior que as demais reinava solitária. Dois negros fortes armados de chuços guarneciam sua entrada. Crianças peladas corriam, algumas galinhas ciscavam e um perro meio esquálido latia dando o alarme com a chegada dos três. Os dois negros lhe conduziram até o fim da rua, na choupana grande que encimava aqueles riscos e sinais dos negros infiéis que tão bem conhecia. Adentrou o recinto e encontrou Teodora sentada no fundo com seu turbante e a saia rendada alva e engomada o que destoava com o recinto rústico e sem luxo. Ela olhou com aquele olhar 
desconfiado, 

de superioridade,  incomum ao seu povo, e logo foi falando: 

─ Quem é vosmece ? 

Nisso os dois negros que estavam ao seu lado lhe pegaram forte e fizeram com que ele ficasse de joelhos, pois perceberam que ele havia mentido para chegar até ali, se não pensasse algo com rapidez estaria em grandes apuros. Teodora fez aquele sinal universal por todos conhecido, passou o dedo indicador pelo pescoço, indicando o que os seus acólitos deviam fazer com ele. Era normal que ela como responsável pela comunidade tivesse que cuidar da segurança de todos e ele parecia um intruso meio estranho, um negro com maneiras de branco. Antes que eles cumprissem sua sentença de morte, que parecia iminente Teodora mirou espantada para seu breve, aquele que a mãe havia lhe dado à guisa de proteção e imediatamente mandou os dois guerreiros pararem. 

─ De onde afanou esse breve negro maldito! – falou Teodora, a rainha feiticeira do quilombo. 

─ Não afanei, não juro! – respondeu o rapaz em desespero com as lágrimas já escorrendo pelo rosto – ganhei da minha mãezinha, que Deus a tenha com saúde, quando sai para a capital lá da estância onde me criei. 

Ela mandou os negros se afastarem e tirou o talismã observando atentamente, cada símbolo, o nome de Alá, o Todo Poderoso inscrito, as formas das letras, as amarrações do breve, olhou atentamente cada detalhe e sua expressão de repente se iluminou como se tivesse descoberto uma verdade profunda, uma paz verdadeira, um peso que saíra do seu coração. Pegou o rapaz pela mão, para surpresa dos demais, e o levou até uma sala pequena ao lado do salão onde mais símbolos da escrita Malê, dos negros islamitas podiam ser vistos gravados em telas de couro curtido. No chão uma esteira permitia a prece solitária da rainha. 

─ Me conte como é tua mãe – falou com uma voz terna, apaziguadora, tentando passar para ele segurança de que o perigo maior já havia passado. 

─ Ela era uma negra bossal, huaçá ou mandinga, vinda direto da África dizia meu pai – quando podia ela sempre me contava as estórias dos animais da sua terra que eu só podia imaginar quando era piá, do chacal que useira e vezeira enganava o leão, senhor da floresta – me dizia sempre que Alá é o único Deus e que Maomé era seu profeta – foi ela mesma que fez esse amuleto – dizia que tinha sido raptada junto com a irmã pelos macoteiros, sobrevivido a travessia do mar grande a duras penas e tinha sido vendida para o estancieiro e separada para sempre da irmã. 

Quando ele encerrou de contar as coisas que se lembrava da mãe notou que os olhos de Teodora estavam marejados de lágrimas e ela disfarçava como podia sua emoção. Ela olhava para ele tentando encontrar algum traço, alguma expressão que denunciasse o embuste ou confirmasse a semelhança com a irmã que há anos não via. Persignou-se ante os sinais sagrados da sala e fez uma prece de agradecimento. Depois olhou para o rapaz, bateu palmas e duas mulheres apareceram. – Tragam alguma coisa para meu sobrinho comer – disse causando surpresa nas duas que saíram alvoroçadas com a novidade que logo seria do conhecimento de todos na vila. Enquanto se preparava o banquete ela lhe contou tudo que as duas tinham passado juntas e como haviam sido marcadas como escravas na chegada ao Brasil e vendidas como gado. Sua irmã comprada pelo estancieiro e ela enviada para uma casa de mulheres de vida fácil onde foi ensinada a limpar os quartos e lavar as latrinas. Ali ficou anos reclusa e até pensou em se matar, mas resolveu fugir um dia que o rufião lhe mandou buscar o vestido de baiana que seria obrigada a usar no prostíbulo. Quando chegou na vila com aquelas roupas de africana foi tomada por uma rainha da terra antiga e como sabia ler e escrever em Malê foi tratada com respeito pelos anciões que ainda se lembravam das antigas tradições e foi entronizada como líder do grupo que crescia a cada dia com as fugas constantes de negros da capital. Mas o perigo rondava perto e precisavam ter muito cuidado com todos os que chegavam pois podiam ser espiões da milícia e dos capitães do mato.




Após o laudo banquete, galinhas cozidas e carne de porco assada e boa aguardente, as danças e batuques, os jogos de guerra com cada moço tentando demonstrar melhor perícia nas suas acrobacias e golpes foram todos se recolher em perfeita harmonia. Juvenal estava feliz, pois tinha ainda muita coisa que queria saber da tia e já imaginava a matéria que iria escrever cheia de aventura, ação e revelações. Foi dormir na casa grande da rainha, numa simples esteira, para no dia seguinte voltar para a capital. Caiu num sono profundo movido pela aguardente e pela comida farta consumida. 

Pela manhã que iniciava, ao raiar do dia foi dado o alarme, o quilombo entrou em polvorosa, se escutavam tiros distantes que se aproximavam, as mulheres choravam pegando as crias no colo e os homens se armavam com seus facões, suas poucas pistolas e espingardas velhas e encaminhavam seu povo para o lado oposto de onde vinham os tiros. Os dois rapazes que no dia anterior haviam lhe escoltado até ali chegaram correndo e avisaram que vinham uns bugres comandados pelos brancos e o velho barqueiro, o Judas que tinha denunciado a posição do quilombo para os capitães do mato. Não tinham sido capturados por pouco, diziam. Juvenal ficou atônito, sentiu vontade de chorar, tinha sido a desgraça da tia, o orgulho da noite anterior se desvanecera e só sobrou a vergonha. A tia olhou para ele compreensiva e disse: 

─ Não te apoquente Juvenal, isso ia acontecer mais dia menos dia, eles já vinham farejando a gente nos últimos meses, só faltava um detalhe para a corja nos descobrir – eles vão botar tudo abaixo, tocar fogo, mas nós vamu construir tudo de novo, pode acreditar – Deus é Grande ! 

Seguiram todos pelo mato e no meio das ramas estavam escondidas suas canoas onde colocaram as mulheres, crianças e velhos e saíram remando para bem longe do perigo. Não ia ser dessa vez que iam pegá-los. Os jovens, todos guerreiros, se embrenharam no mato, pois queriam dar uns sustos naqueles malditos, iam pensar duas vezes em voltar ali outra vez. A tia mandou que ele fosse levado de volta para a capital não sem antes lhe dar um forte abraço. Ficaria anos sem voltar a ver o rosto cheio de sabedoria da tia Teodora, a rainha do quilombo. 

Voltou para a capital, desembarcou numa enseada e seguiu de carona numa carroça para a pensão onde morava. Levou um dia inteiro inteiro para escrever o relato, releu umas mil vezes, escreveu de novo e no outro dia foi até o jornal e mostrou para o redator os escritos cheio de orgulho pela obra. 

─ Nego muleque, não bastasse faltar ao serviço esses dias e deixar atrasada todas as composições e ainda vem com essas lorotas para justificar as tuas faltas, passa daqui e vai montar os obituários que deixaste para trás, só que faltava um negro querendo virar articulista, em que mundo nós estamos! – pegou o artigo com desdém rasgou com raiva e jogou na cesta do lixo. 

Juvenal saiu desanimado, mas era assim o mundo do branco, nunca iam permitir que na capital um negro pudesse escrever num jornal de gabarito. Estava fora de cogitação. Ele tinha amadurecido com todo o acontecido. Ficou uns dias acabrunhado, sem querer conversa. Mas umas semanas depois entrou esbaforido um repórter pela redação e anunciou com espalhafato: 

─ Bento Gonçalves resolveu se rebelar contra o Império, os revoltosos se aproximam da capital – e tem mais ainda estão dizendo que vão libertar a escravaria. 

Foi quando Juvenal deslizou invisível para fora do prédio do jornal e na sua cabeça já fazia planos de como se engajar na tropa do general, mas essa é outra estória.