Este espaço é uma homenagem ao grande sociólogo e historiador Gilberto Freire criador da obra homônima. Seu objetivo é a divulgação de latinidades, africanismos e gentilidades e o desvelamento desse povo apaixonante e apaixonado denominado latino americano e suas origens.

domingo, 6 de março de 2011

A Grande Insurreição de 1835 - Bahia

A REVOLTA DOS MALÊS



Dirigida por escravos Nagô, a revolta de 1835 foi considerada a mais relevante do séc. XIX. Reuniu entre seus participantes e líderes diversas outra etnias, principalmente os Tapas. A experiência adquirida das muitas revoltas ocorridas na primeira metade do século demonstrou a assimilação pelos cativos de uma forma de resistência contra seus senhores apesar da sangrenta repressão a que eram submetidos após os levantes.

Suas motivações políticas eram restritas ao mundo que os cercava e emanadas da vivência sofrida nas mãos de uma sociedade escravista e pautavam pela simplicidade de objetivos. Pretendiam sua liberdade e o fim do cativeiro dos seus pares. Procuravam tirar o máximo de experiência dos embates anteriores e segundo os registros dos seus captores tinham por objetivo imediato "matar todos os brancos, pardos e crioulos".

A revolta de 1835 teve como característica principal, diferente das demais, de geração espontânea  foi  um plano urdido com certa antecedência,  um aliciamento de participantes na clandestinidade do sistema escravista vigente, e demonstra o real estado de ojeriza dos seus integrantes pela sua condição servil  à qual foram obrigados pelas circunstâncias injustas da época. Para mudar sua condição estavam dispostos aos maiores sacrifícios.

Derrotada a iniciativa de 1830 chefiada pelos Nagô, procuraram seus líderes sobreviventes se reorganizar e iniciar a preparação para integrar seus membros para uma nova iniciativa de libertação. Além dos grupos de escravos que se reuniam secretamente em vários pontos da cidade de Salvador, criaram os insurgentes uma associação secreta que funcionava na Barra (Vitória). Essa associação ficava localizada nos fundos da casa do inglês denominado Abrão (Abraham) e exerceu importante papel na estruturação e deflagração do movimento. Era uma casa de palha construída pelos próprios negros para suas reuniões. Seus líderes mais ativos eram os escravos Nagô: Diogo, Ramil, James, Cornélio, Tomás e outros. Reuniam-se periodicamente para traçarem os planos da insurreição, muitas vezes em conjunto com outros grupos do centro da cidade, de negros dos saveiros de Santo Amaro e Itaparica, com quem mantinham contato e contavam para o sucesso do levante.

Essa associação existia já bem antes do levante. Existiam já denúncias contra sua existência bem antes dos acontecimentos, já que era proibido aos negros manterem organizações. Os seus membros possuíam um anel que os identificava e, pelo menos, no dia do levante, usavam indumentárias brancas que os distinguiam. Havia na associação um escravo chamado Tomás, que ensinava os demais a escrever certamente em caracteres arábicos. Havia também capitães eleitos pelo grupo.

Outro lugar importante de reuniões era a casa do preto forro Belchior da Silva Cunha. Ainda segundo o depoimento da escrava Teresa, na sua delação, indicou um negro da nação Tapa, mestre que foi um dos mais importantes do levante denominado Luís Sanim. Nessa casa reuniam-se os líderes mais importantes do movimento que discutiam e articulavam seus planos com elementos do Recôncavo e de outros cantos da província. 

Será ainda ponto de reunião a casa do Alufá Pacífico Licutã que, no cruzeiro de São Francisco, pregava abertamente aos cativos as idéias de libertação. Esse importante personagem, influente entre os seus, era letrado, e ensinava aos demais mistérios e rezas malês. Tendo sido "depositado" em penhora por dívida aos frades carmelitas pelo seu "senhor" foi obrigado assistir impotente ao desenrolar dos acontecimentos, tendo os escravos tentado libertá-lo, sem o conseguir. O carcereiro testemunhou posteriormente que foi grande o número de escravos que foram em visita ao prisioneiro durante os dias que antecederam o levante. Eles chegaram a reunir o valor necessário para sua libertação mas seu "dono" não aceitou o pagamento o que leva a crer que o mantinha preso de caso pensado.

Manuel Calafate foi outro cabeça do movimento. Sua casa era centro de reunião dos mais importantes. No porão onde habitava, no segundo prédio da Ladeira da Praça, todos os escravos das imediações, ligados ao movimento, participavam ativamente dos encontros. Além de Calafate, atuavam como parceiros os negros Aprígio e Conrado. Após sufocado o movimento farto material foi encontrado: livros, tábuas com rezas. Da mesma forma foi encontrado na casa do Hauçá Elesbão Dandará, que antes morava no Gravatá, mas que preferiu alugar uma tenda no Beco dos Tanoeiros para melhor aliciar adeptos que reunia e instruía nos mistérios e princípios do Islã. Difundia as rezas em papéis e tábuas escritas em caracteres arábicos exortando a fé e a liberdade e os rosários para execução das rezas. Era também, como Luís Sanim, mestre em sua terra nativa.

Tinham ainda os escravos outro local de reuniões, a porta do Convento das Mercês. Os negros que pertenciam àquele convento, chefiados pelos escravos Agostinho e Francisco se reuniam com cativos de outras procedências para discutirem formas de conseguirem sua libertação. Em seus pontos de encontro como na casa de um preto chamado Luís, na rua Juliano ou na casa do preto Ambrósio de nação nagô, residente ao Tabuão onde a policia iria encontrar, nas buscas realizadas após o sufocamento do movimento, "papéis com inscritos em caracteres arábicos", e muitos outros lugares de reunião que vão ser devassados depois de iniciada a violenta repressão.

Mantinham contato com os escravos do Recôncavo e de Pernambuco formando dois grupos principais que orientavam e dirigiam o movimento: o primeiro era o núcleo urbano, com ramificações em diversos lugares - Ladeira da Praça, Guadelupe, Convento das Mercês, Largo da Vitória, Cruzeiro de São Francisco, Beco do Grelo, Beco dos Tanoeiros e assim por diante, chefiados por Dandará, Licutã, Sanim, Belchior, Calafate e outros; e o segundo chefiado pelos escravos Jamil, Diogo, James e outros  pertencentes ao Clube da Barra, certamente com ligações insuspeitas nunca reveladas na devassa. Os dois grupos mantinham estreito contato e promoviam reuniões para articular a sublevação com ligações no interior do Recôncavo baiano. Os negros de Santo Amaro, de Itaparica e outros pontos vinham se reunir com os de Salvador para discutirem os detalhes do movimento. Aliás será através das conversas de escravos e saveireiros que mencionaram a presença de escravos de Santo Amaro para conspirar que a escrava Guilhermina tomou conhecimento do levante e denunciou para as autoridades da repressão. 

Os cativos criaram um fundo para as despesas do movimento. A idéia foi de Luís Sanim e era feita a coleta por Belchior e Gaspar, que quando foram recolhidos ao Forte do Mar, após suas prisões tiveram confiscado em suas casas a quantia de setenta e nove mil e quatrocentos e oitenta réis que haviam reunido para pagarem as roupas, saldarem as semanas de seus senhores, e comprarem alforrias dos companheiros. Fazia muito tempo que vinham penosamente juntando dinheiro para fazer frente as despesas necessárias. Iriam manter essa mesma conduta nas revoltas posteriores, certamente pela eficiência estratégica desse procedimento. 

O plano militar foi elaborado antecipadamente e foram distribuídas as ordens entre as células para sua execução pelos chefes imediatos. Partiria um grupo da Vitória, comandado pelos chefes do Clube, "tomando a terra e matando toda a gente da terra de branco", rumando para a Água dos Meninos e, em seguida, marchando para o Cabrito, "atrás de Itapagipe", onde se reuniriam às demais forças e fariam a conexão com os escravos dos engenhos. Essas ordens foram dirigidas em forma de proclamações por um líder que se intitulava Mala Abubaker. 

O plano não foi rigorosamente executado em função da delação da escrava Guilhermina, o que prejudicou o fator surpresa. Seu companheiro, que fazia parte do levante, através das conversas com outros envolvidos inteirou a escrava da conspiração que delatou o plano dos escravos para as autoridades. Fez chegar ao juiz de paz a data e a hora do levante, que foi prontamente informado ao presidente da província. A cidade ficou em pé de guerra, sentinelas tomaram postos e o chefe da policia foi até o Bom Fim para evitar a conexão dos revoltosos com os dos engenhos das cercanias. 

Vendo que a situação era insustentável os chefes escravos anteciparam a revolta e partiram para o ataque para evitar uma devassa inevitável, pois as forças policiais começaram a invadir as casas e os redutos dos escravos, a repressão já estava em andamento. Na noite de 24 de Janeiro estourou a revolta armada, naquela altura quase como um ato de desespero.

Os primeiros tiros foram ouvidos da casa da  Ladeira da Praça de Manuel Calafate,  que apesar das evasivas do inquilino, o pardo Domingos Martinho de Sá, foi cercada e invadida pela força policial que sabia da existência de um grupo de escravos que estava escondido na loja, isto é, nos porões da habitação, como era costume chamar em Salvador esse tipo de espaço inferior. Quando as autoridades foram dar busca na casa de súbito se entreabriu a porta da loja e dela partiu um tiro de bacamarte, seguido da irrupção de uns 60 negros armados de espadas, lanças, pistolas, espingardas e aos gritos de mata soldado.

Da defensiva partiram imediatamente para a ofensiva dentro da casa e seguiram em marcha forçada em direção a Ajuda para arrombar a cadeia e libertar os companheiros e principalmente Pacifico Licutã. Não obtendo sucesso na investida, o grupo de escravos seguiu em direção ao Largo do Teatro, onde travou desesperado combate com a policia, colocando em fuga mais uma vez suas forças. Tinham aberto caminho até o Forte de São Pedro com essa vitória. Vendo a impossibilidade de tomar a fortificação com seus canhões tentarão a conexão com as outras forças que vieram da Vitória chefiadas pelo pessoal do Clube da Barra que já haviam se juntado ao grupo do Convento das Mêrces. Os escravos da Vitória atravessaram o fogo do forte e operaram a junção planejada. Em seguida seguiram abrindo caminho em direção à Mouraria, novamente envolvidos em combate com a policia. Perderam dois dos seus e partiram em direção à Ajuda para novamente intentar libertar Licutã. Dai mudaram seu curso descendo para a Baixa dos Sapateiros, seguindo pelos Coqueiros. Irromperam na Água dos Meninos, na Cidade Baixa onde ocorreu o derramamento de sangue definitivo, em combate de grande proporções com a policia.

Na Igreja do Bom Fim as famílias abastadas dos senhores foram alojadas em segurança enquanto o chefe de policia comandava o sufocamento do levante. Os escravos investiram sobre o Forte de Cavalaria com o heroísmo do desespero, de quem não tem nada a perder, na sua luta pela libertação. Foram vencidos pela superioridade das armas no seu ataque que mesmo assim causou profunda impressão pela coragem até nos adversários. As forças do governo causaram baixas importantes aos atacantes. A um comando do chefe da policia uma carga de cavalaria avança sobre os revoltosos enquanto infantes fazem alvo das ameias do forte varando os corpos dos escravos. A carnificina se instaura. Perderam a vida cerca de quarenta revoltosos. Muitos foram feridos, outros se afogaram ao tentar empreender a fuga pelo mar que estava guarnecido por uma fragata da marinha. O levante foi sufocado.

Pacifico Licutã que já estava preso antes do levante viu abatido seus companheiros serem levados a ferro para a cadeia. Todos tiveram um comportamento digno perante os captores. Além dele houveram outros guerreiros que se destacaram nos combates de rua. Com as roupas sujas de sangue e ferimentos a bala no corpo os dirigentes do Clube da Barra foram todos detidos pelas autoridades. Uns foram levados para a Fortaleza de São Pedro e outros para o Forte do Mar. 

Acabado o levante, brutal repressão abateu-se sobre seus integrantes. A cidade ficou sendo patrulhada dia e noite. Francisco Gonçalves Martins, o chefe da policia que derrotou os revoltosos manda invadir as residencias de negros escravos e forros que foram todas vasculhadas e 281 são levados presos. Foram organizadas milicias de populares para guardar as ruas da cidade. Os escravos só podiam sair à rua com ordem escrita de seus senhores dizendo qual os seus destinos.

Depois do ritual processual quase todos foram condenados a penas duras. Inicialmente dezesseis foram condenados a morte. Depois alguns foram indultados pelo Regente. Elesbão Dandará, um dos lideres, deve ter morrido em combate, pois não há menção de seu nome nos autos. Manuel Calafate, ao que parece, nada sofreu. O mestre Luís Sanim foi condenado a morte, mas teve sua sentença comutada para seiscentos açoites. Pacifico Licutão, apesar de preso quando estourou a revolta foi condenado a seiscentos açoites. Os lideres do Clube da Barra foram rigorosamente punidos. Antonio Hauçá foi condenado a quinhentos açoites; Higino sofreu pena de quatrocentos açoites; Tomp a de quinhentos; Luis Nagô a duzentos açoites; e Tomás, "o mestre que ensinava a ler", a trezentos açoites em praça pública "aplicados interpoladamente como manda a lei".

Cinco foram condenados a morte por se negar a viver em cativeiro. No dia 14 de maio de 1835 foram fuzilados. Foram eles os libertos Jorge da Cunha Barbosa e Jose Francisco Gonçalves e os escravos Gonçalo, Joaquim e Pedro. Condenados a forca não encontrou o governo quem os executasse e por isso foram fuzilados com honras militares. 

Durante o processo negam delatar os companheiros, dizem desconhecer os que lideraram a insurreição, até mesmo seus vizinhos dizem ignorar.  Henrique Nagô, tomado pelo tétano das feridas que o mataria horas depois disse não conhecer quem o convidou para a revolta e morre em convulsões negando sempre até o momento final. Entre os que morreram nos combates, ou afogados, os que morreram dos ferimentos e mau tratos e os que foram executados foram mais de cem.

Do lado senhorial morreram apenas dois militares, um sargento da Guarda Nacional e um soldado de artilharia que lutou com louvor e matou um negro e feriu muitos outros antes de ser abatido. Mais três sofreram ferimentos e civis que foram atingidos mortalmente.  

Em 1844 houve nova tentativa de organizar mais um levante, mas foi rapidamente sufocado após a delação de outra escrava que havia se desentendido do companheiro. Pouco se sabe do destino de seus mentores ambos Malês.   

Nas conspirações contra a côroa e na guerra da independência do Brasil, quando os "senhores de escravos"tomavam partido ora por uma ora por outra facção, influenciados pelos novos ares de revolução provenientes da Europa, os negros foram sempre convocados à lutar e levados ao martírio por seus donos. Como recompensa pelo sacrifício supremo sempre era acenada a tão desejada liberdade ao fim do conflito, como argumento para motivá-los para o combate. Nessas guerras e revoluções demonstraram seu denodo e valentia reconhecida pelos muitos registros deixados na história  Finda a revolução ou a guerra, as promessas eram quase sempre esquecidas ao arrefecer dos bater dos tambores e os negros que tinham pego gosto pelas armas eram particularmente visados pela repressão, no período de paz, quando não chacinados, como ocorreu no sul, ao fim da Revolução Farroupilha. Quando era vencida a conjura e desterrados os conjurados, os"donos" levavam seus criados junto com os pertences pessoais, como semoventes, solidários forçados que eram os cativos na desgraça dos "senhores".

Bibliografia: Texto Adaptado de Rebeliões das Senzalas - Clóvis Moura - 1988 - Ed. Mercado Aberto 4° Ed.              

sexta-feira, 4 de março de 2011

Motim a Bordo - O Tráfico de Escravos


Os escravos ao serem transportados para as Américas, algumas vezes, pelas condições terríveis da travessia, amotinavam-se contra seus captores. Não era fácil tal tipo de revolta, as guarnições dos navios, sempre alertas, ao menor indício de agitação puniam drasticamente os cativos. Mas apesar de todos os cuidados tomados pelos traficantes, muitas vezes a carga viva em desespero dos navios negreiros se insurgia. Os sofrimentos por que passavam nas naus eram tão horrendos que preferiam a morte de um combate duvidoso, ou o suicídio puro e simples do que permanecerem nas condições subumanas a que estavam obrigados.

Podiam acomodar de quatrocentos a quinhentos nativos em uma pequena nau, como porcos num chiqueiro, a ponto de o próprio cheiro de suor e excrementos matar muitos deles. Os porões da coberta eram aferrolhados e somente umas poucas frestas existiam para o ar penetrar. O racionamento de alimentação durante a viagem, quase sempre em péssimas condições de conservação, garantia o lucro final da carregação para o capitão. A ração de água, quase sempre morna e contaminada, era pouquíssima e levava às pestilências, e depois de alguns dias de viagem obrigava a tripulação deitar corpos sem vida de africanos ao mar. Só as mulheres e os moleques que permaneciam na coberta era a melhor porção que conseguia chegar vivos ao destino.




Quando o capitão permitia, para garantir seus interesses e assim evitar grande mortandade, mandavam lavar a coberta e com esponjas correr o interior dela com vinagre. Todos os dias por pouco tempo, e por poucas horas mandavam vir em ferros para cima da coberta parte da escravatura embarcada para que possam tomar um ar,  conforme informam as testemunhas da época, tomando o cuidado de manter a maioria nos porões para evitar um levante.

Podemos imaginar, pelas condições que eram expostos os embarcados, o que significava uma revolta de escravos a bordo, Os negros enfurecidos pelo desespero, quando conseguiam dominar a tripulação do negreiro executavam verdadeiras matanças. Por isso, os castigos infligidos aos negros que se revoltavam ou tentavam amotinar-se durante a travessia eram terríveis. Relatos da época e testemunhos são inúmeros.




Do livro de bordo de um navio negreiro L’African, em 1738, extrai-se essa passagem: “Sábado, 29 de dezembro, Amarramos ontem os negros mais culpados, isto é, os negros autores da revolta, pelos quatro membros e deitados de bruços em cima da ponte, fizemo-lhes escarificações nas nádegas para que sentissem melhor suas faltas. Depois de ter posto as nádegas em sangue pelos açoites e escarificações, pusemos em cima pólvora, suco de limão, salmoura e pimenta, tudo pilado, juntamente com outra droga posta pelo cirurgião; e atiramo-lhes às nádegas para evitar que houvesse gangrena...”

Por uma simples suspeita de revolta em outro navio, conta o historiador, um capitão condenou dois negros à morte, em 1724. Uma negra escrava foi suspensa ao mastro e flagelada. Depois com tesouras, arrancaram-lhe cem filetes de carne até que os ossos aparecessem; o outro condenado foi estrangulado e arrancaram-lhe o fígado, o coração e o intestino. Seu corpo foi cortado em pedaços que os outros escravos foram obrigados a provar.

Outro relato, que dá uma idéia sobre as condições desses carregamentos humanos,  foi o do tradutor e oficial capelão da fragata Cleópatra, o inglês, Mr. Hill, embarcado no navio negreiro "Progresso", apresado pelas fragatas inglesas quando navegava ainda em mar calmo: "O navio era impelido por uma leve brisa que variava de rumo. Os negros dormiam ou estavam estendidos no convés. De tal maneira se enlaçavam uns com os outros em um pequeno espaço, que, à luz incerta do luar, mais pareciam um montão confuso de braços e pernas, do que corpos humanos. Pela 1 hora depois da meia-noite começou o céu a cobrir-se de nuvens, e o horizonte escurecia na direção do vento. Um aguaceiro corria sobre nós; caíram algumas gôtas d'agua e de repente principiou uma cena, cujos horrores não é possível descrever. Obrigados a obedecer imediatamente à voz de ferrar o pano, os marinheiros embarcados pelos negros estendidos no convés, não puderam manobrar como convinha. 'Façam descer os negros'. Gritou o capitão, e assim se fez. Mas o tempo estava pesado e quente e esses 400 infelizes, amontoados em um espaço de 12 toesas de longo e 7 de largo, com três pés e meio apenas de alto, em breve começaram a forcejar para voltar ao convés e respirar o ar livre. Repelidos, fizeram segunda tentativa. Foi preciso fechar-lhes as escotilhas de ré, e colocar uma espécie de grade de madeira na proa. Então os negros começaram a amontoar-se junto desta escotilha por ser a única abertura que deixava comunicar o ar. Sufocavam, e, estimulados talvez por algum terror pânico, entraram a juntar-se de tal forma, que impediram completamente a ventilação. Por toda a parte onde pensavam encontrar uma passagem, faziam os maiores esforços para sair; alguns saíram efetivamente por espaços que tinham cerca de 14 polegadas de longo e 6 de largo...No dia 13 de abril de 1843, quinta-feira santa, acharam-se no porão 54 cadáveres que foram lançados ao mar. Alguns desses infelizes tinham perecido de moléstia; porém muitos dos cadáveres estavam machucados e cobertos de sangue, Antonio, um espanhol de bordo da presa, contou-me que foram vistos alguns já prestes a morrer, estrangulando-se ou apertando a garganta uns dos outros. Um por tal modo foi comprimido que as entranhas lhe saíram para fora do corpo. A maior parte deles tinham sido calcado aos pés no delírio e sofreguidão com que buscavam ar que respirasse. Horroroso espetáculo era ver arrojado ao mar, um após outro, esses corpos torcidos, inteiriçados, manchados de sangue e de excremento!..." (Da obra:"Cinquenta Dias a bordo de um navio negreiro" de autoria do capelão da fragata Cleópatra)

Com esses relatos preliminares podemos ter uma idéia em que condições esses seres humanos eram trazidos de sua terra nativa para lucro de comerciantes e satisfação de mão de obra cativa para os senhores de escravos do Novo Mundo.

Pois bem, retornando à narrativa, em 1823 os escravos de um tumbeiro que se dirigia provavemente às costas da Bahia amotinaram-se e assassinaram vários tripulantes da embarcação. Vinha a nau com uma carregação de negros Macuas, quando, inesperadamente, estourou o motim, sendo os tripulantes alguns jogados pela amurada e espancados com achas de lenha. Certamente foi sufocado o motim, pois de outra forma não se explica o fato de haver chegado o navio negreiro à Salvador.


O motim foi inteiramente acidental e não teve prévia organização, com certeza fruto das péssimas condições do transporte e algum outro motivo fortuito durante a longa travessia. Tiveram a oportunidade do levante, coisa da maior dificuldade para a maioria dos cativos em semelhantes condições, quando eram levados para o Novo Mundo, pela experiência dos captores e sua vigilância constante, como já vimos.

Apesar do improviso, segundo os autos de acusação, havia um líder que se destacou, encorajou os companheiros e dirigiu a rebelião. Foi o preto ladino José Toto ou José Pato. O escravo Niquirita afirmou em juízo que o levante tinha sido "insinuado aos negros Macuas pelo preto ladino José Toto", depoimento que coincide com o de outro ladino implicado, o escravo Lauriano, que também afirmou nos autos: "quem aconselhara os negros novos para se levantarem fora o preto ladino de nome José Pato.



Ainda pelos depoimentos apurados, as armas utilizadas foram achas de lenha e outros objetos encontrados a bordo. Na matança aos brancos tripulantes se destacaram os pretos novos Macu, Mamatundu e Macutandu.

Esse pretos novos, todos Macua recém chegados do continente africano, acreditavam que, "se assim não fizessem, os brancos os comeriam na sua terra".

A idéia em sí não é de todo implausível, do ponto de vista dos cativos, pelas péssimas condições em que se encontravam era normal imaginar que seriam devorados após a travessia. O que não conseguiam imaginar era que iriam sofrer um outro tipo de devoramento. Suas pernas e seus braços iriam ser sacrificados ao deus da ganância dos brancos. Um negro durava em média 7 anos nas minas e 15 anos na lavoura, seus destinos estavam selados desde o primeiro dia do embarque.

Após o julgamento do motim as setenças foram proferidas. Poucos registros restaram para sabermos o destino dos acusados. Devem, porém, como era praxe nesses casos terem sido enforcados, pelo menos os líderes, já que a mão de obra importada era escassa. Por crimes menores, costumava a justiça na época condenar os cativos a 500, 600  ou até mais açoites. Nos autos sobre rebeliões das senzalas, essas penas eram comuns, pela simples presunção de culpa do indivíduo  na sua participação ou em apoio aos movimentos de libertação.