Este espaço é uma homenagem ao grande sociólogo e historiador Gilberto Freire criador da obra homônima. Seu objetivo é a divulgação de latinidades, africanismos e gentilidades e o desvelamento desse povo apaixonante e apaixonado denominado latino americano e suas origens.

domingo, 6 de março de 2011

A Grande Insurreição de 1835 - Bahia

A REVOLTA DOS MALÊS



Dirigida por escravos Nagô, a revolta de 1835 foi considerada a mais relevante do séc. XIX. Reuniu entre seus participantes e líderes diversas outra etnias, principalmente os Tapas. A experiência adquirida das muitas revoltas ocorridas na primeira metade do século demonstrou a assimilação pelos cativos de uma forma de resistência contra seus senhores apesar da sangrenta repressão a que eram submetidos após os levantes.

Suas motivações políticas eram restritas ao mundo que os cercava e emanadas da vivência sofrida nas mãos de uma sociedade escravista e pautavam pela simplicidade de objetivos. Pretendiam sua liberdade e o fim do cativeiro dos seus pares. Procuravam tirar o máximo de experiência dos embates anteriores e segundo os registros dos seus captores tinham por objetivo imediato "matar todos os brancos, pardos e crioulos".

A revolta de 1835 teve como característica principal, diferente das demais, de geração espontânea  foi  um plano urdido com certa antecedência,  um aliciamento de participantes na clandestinidade do sistema escravista vigente, e demonstra o real estado de ojeriza dos seus integrantes pela sua condição servil  à qual foram obrigados pelas circunstâncias injustas da época. Para mudar sua condição estavam dispostos aos maiores sacrifícios.

Derrotada a iniciativa de 1830 chefiada pelos Nagô, procuraram seus líderes sobreviventes se reorganizar e iniciar a preparação para integrar seus membros para uma nova iniciativa de libertação. Além dos grupos de escravos que se reuniam secretamente em vários pontos da cidade de Salvador, criaram os insurgentes uma associação secreta que funcionava na Barra (Vitória). Essa associação ficava localizada nos fundos da casa do inglês denominado Abrão (Abraham) e exerceu importante papel na estruturação e deflagração do movimento. Era uma casa de palha construída pelos próprios negros para suas reuniões. Seus líderes mais ativos eram os escravos Nagô: Diogo, Ramil, James, Cornélio, Tomás e outros. Reuniam-se periodicamente para traçarem os planos da insurreição, muitas vezes em conjunto com outros grupos do centro da cidade, de negros dos saveiros de Santo Amaro e Itaparica, com quem mantinham contato e contavam para o sucesso do levante.

Essa associação existia já bem antes do levante. Existiam já denúncias contra sua existência bem antes dos acontecimentos, já que era proibido aos negros manterem organizações. Os seus membros possuíam um anel que os identificava e, pelo menos, no dia do levante, usavam indumentárias brancas que os distinguiam. Havia na associação um escravo chamado Tomás, que ensinava os demais a escrever certamente em caracteres arábicos. Havia também capitães eleitos pelo grupo.

Outro lugar importante de reuniões era a casa do preto forro Belchior da Silva Cunha. Ainda segundo o depoimento da escrava Teresa, na sua delação, indicou um negro da nação Tapa, mestre que foi um dos mais importantes do levante denominado Luís Sanim. Nessa casa reuniam-se os líderes mais importantes do movimento que discutiam e articulavam seus planos com elementos do Recôncavo e de outros cantos da província. 

Será ainda ponto de reunião a casa do Alufá Pacífico Licutã que, no cruzeiro de São Francisco, pregava abertamente aos cativos as idéias de libertação. Esse importante personagem, influente entre os seus, era letrado, e ensinava aos demais mistérios e rezas malês. Tendo sido "depositado" em penhora por dívida aos frades carmelitas pelo seu "senhor" foi obrigado assistir impotente ao desenrolar dos acontecimentos, tendo os escravos tentado libertá-lo, sem o conseguir. O carcereiro testemunhou posteriormente que foi grande o número de escravos que foram em visita ao prisioneiro durante os dias que antecederam o levante. Eles chegaram a reunir o valor necessário para sua libertação mas seu "dono" não aceitou o pagamento o que leva a crer que o mantinha preso de caso pensado.

Manuel Calafate foi outro cabeça do movimento. Sua casa era centro de reunião dos mais importantes. No porão onde habitava, no segundo prédio da Ladeira da Praça, todos os escravos das imediações, ligados ao movimento, participavam ativamente dos encontros. Além de Calafate, atuavam como parceiros os negros Aprígio e Conrado. Após sufocado o movimento farto material foi encontrado: livros, tábuas com rezas. Da mesma forma foi encontrado na casa do Hauçá Elesbão Dandará, que antes morava no Gravatá, mas que preferiu alugar uma tenda no Beco dos Tanoeiros para melhor aliciar adeptos que reunia e instruía nos mistérios e princípios do Islã. Difundia as rezas em papéis e tábuas escritas em caracteres arábicos exortando a fé e a liberdade e os rosários para execução das rezas. Era também, como Luís Sanim, mestre em sua terra nativa.

Tinham ainda os escravos outro local de reuniões, a porta do Convento das Mercês. Os negros que pertenciam àquele convento, chefiados pelos escravos Agostinho e Francisco se reuniam com cativos de outras procedências para discutirem formas de conseguirem sua libertação. Em seus pontos de encontro como na casa de um preto chamado Luís, na rua Juliano ou na casa do preto Ambrósio de nação nagô, residente ao Tabuão onde a policia iria encontrar, nas buscas realizadas após o sufocamento do movimento, "papéis com inscritos em caracteres arábicos", e muitos outros lugares de reunião que vão ser devassados depois de iniciada a violenta repressão.

Mantinham contato com os escravos do Recôncavo e de Pernambuco formando dois grupos principais que orientavam e dirigiam o movimento: o primeiro era o núcleo urbano, com ramificações em diversos lugares - Ladeira da Praça, Guadelupe, Convento das Mercês, Largo da Vitória, Cruzeiro de São Francisco, Beco do Grelo, Beco dos Tanoeiros e assim por diante, chefiados por Dandará, Licutã, Sanim, Belchior, Calafate e outros; e o segundo chefiado pelos escravos Jamil, Diogo, James e outros  pertencentes ao Clube da Barra, certamente com ligações insuspeitas nunca reveladas na devassa. Os dois grupos mantinham estreito contato e promoviam reuniões para articular a sublevação com ligações no interior do Recôncavo baiano. Os negros de Santo Amaro, de Itaparica e outros pontos vinham se reunir com os de Salvador para discutirem os detalhes do movimento. Aliás será através das conversas de escravos e saveireiros que mencionaram a presença de escravos de Santo Amaro para conspirar que a escrava Guilhermina tomou conhecimento do levante e denunciou para as autoridades da repressão. 

Os cativos criaram um fundo para as despesas do movimento. A idéia foi de Luís Sanim e era feita a coleta por Belchior e Gaspar, que quando foram recolhidos ao Forte do Mar, após suas prisões tiveram confiscado em suas casas a quantia de setenta e nove mil e quatrocentos e oitenta réis que haviam reunido para pagarem as roupas, saldarem as semanas de seus senhores, e comprarem alforrias dos companheiros. Fazia muito tempo que vinham penosamente juntando dinheiro para fazer frente as despesas necessárias. Iriam manter essa mesma conduta nas revoltas posteriores, certamente pela eficiência estratégica desse procedimento. 

O plano militar foi elaborado antecipadamente e foram distribuídas as ordens entre as células para sua execução pelos chefes imediatos. Partiria um grupo da Vitória, comandado pelos chefes do Clube, "tomando a terra e matando toda a gente da terra de branco", rumando para a Água dos Meninos e, em seguida, marchando para o Cabrito, "atrás de Itapagipe", onde se reuniriam às demais forças e fariam a conexão com os escravos dos engenhos. Essas ordens foram dirigidas em forma de proclamações por um líder que se intitulava Mala Abubaker. 

O plano não foi rigorosamente executado em função da delação da escrava Guilhermina, o que prejudicou o fator surpresa. Seu companheiro, que fazia parte do levante, através das conversas com outros envolvidos inteirou a escrava da conspiração que delatou o plano dos escravos para as autoridades. Fez chegar ao juiz de paz a data e a hora do levante, que foi prontamente informado ao presidente da província. A cidade ficou em pé de guerra, sentinelas tomaram postos e o chefe da policia foi até o Bom Fim para evitar a conexão dos revoltosos com os dos engenhos das cercanias. 

Vendo que a situação era insustentável os chefes escravos anteciparam a revolta e partiram para o ataque para evitar uma devassa inevitável, pois as forças policiais começaram a invadir as casas e os redutos dos escravos, a repressão já estava em andamento. Na noite de 24 de Janeiro estourou a revolta armada, naquela altura quase como um ato de desespero.

Os primeiros tiros foram ouvidos da casa da  Ladeira da Praça de Manuel Calafate,  que apesar das evasivas do inquilino, o pardo Domingos Martinho de Sá, foi cercada e invadida pela força policial que sabia da existência de um grupo de escravos que estava escondido na loja, isto é, nos porões da habitação, como era costume chamar em Salvador esse tipo de espaço inferior. Quando as autoridades foram dar busca na casa de súbito se entreabriu a porta da loja e dela partiu um tiro de bacamarte, seguido da irrupção de uns 60 negros armados de espadas, lanças, pistolas, espingardas e aos gritos de mata soldado.

Da defensiva partiram imediatamente para a ofensiva dentro da casa e seguiram em marcha forçada em direção a Ajuda para arrombar a cadeia e libertar os companheiros e principalmente Pacifico Licutã. Não obtendo sucesso na investida, o grupo de escravos seguiu em direção ao Largo do Teatro, onde travou desesperado combate com a policia, colocando em fuga mais uma vez suas forças. Tinham aberto caminho até o Forte de São Pedro com essa vitória. Vendo a impossibilidade de tomar a fortificação com seus canhões tentarão a conexão com as outras forças que vieram da Vitória chefiadas pelo pessoal do Clube da Barra que já haviam se juntado ao grupo do Convento das Mêrces. Os escravos da Vitória atravessaram o fogo do forte e operaram a junção planejada. Em seguida seguiram abrindo caminho em direção à Mouraria, novamente envolvidos em combate com a policia. Perderam dois dos seus e partiram em direção à Ajuda para novamente intentar libertar Licutã. Dai mudaram seu curso descendo para a Baixa dos Sapateiros, seguindo pelos Coqueiros. Irromperam na Água dos Meninos, na Cidade Baixa onde ocorreu o derramamento de sangue definitivo, em combate de grande proporções com a policia.

Na Igreja do Bom Fim as famílias abastadas dos senhores foram alojadas em segurança enquanto o chefe de policia comandava o sufocamento do levante. Os escravos investiram sobre o Forte de Cavalaria com o heroísmo do desespero, de quem não tem nada a perder, na sua luta pela libertação. Foram vencidos pela superioridade das armas no seu ataque que mesmo assim causou profunda impressão pela coragem até nos adversários. As forças do governo causaram baixas importantes aos atacantes. A um comando do chefe da policia uma carga de cavalaria avança sobre os revoltosos enquanto infantes fazem alvo das ameias do forte varando os corpos dos escravos. A carnificina se instaura. Perderam a vida cerca de quarenta revoltosos. Muitos foram feridos, outros se afogaram ao tentar empreender a fuga pelo mar que estava guarnecido por uma fragata da marinha. O levante foi sufocado.

Pacifico Licutã que já estava preso antes do levante viu abatido seus companheiros serem levados a ferro para a cadeia. Todos tiveram um comportamento digno perante os captores. Além dele houveram outros guerreiros que se destacaram nos combates de rua. Com as roupas sujas de sangue e ferimentos a bala no corpo os dirigentes do Clube da Barra foram todos detidos pelas autoridades. Uns foram levados para a Fortaleza de São Pedro e outros para o Forte do Mar. 

Acabado o levante, brutal repressão abateu-se sobre seus integrantes. A cidade ficou sendo patrulhada dia e noite. Francisco Gonçalves Martins, o chefe da policia que derrotou os revoltosos manda invadir as residencias de negros escravos e forros que foram todas vasculhadas e 281 são levados presos. Foram organizadas milicias de populares para guardar as ruas da cidade. Os escravos só podiam sair à rua com ordem escrita de seus senhores dizendo qual os seus destinos.

Depois do ritual processual quase todos foram condenados a penas duras. Inicialmente dezesseis foram condenados a morte. Depois alguns foram indultados pelo Regente. Elesbão Dandará, um dos lideres, deve ter morrido em combate, pois não há menção de seu nome nos autos. Manuel Calafate, ao que parece, nada sofreu. O mestre Luís Sanim foi condenado a morte, mas teve sua sentença comutada para seiscentos açoites. Pacifico Licutão, apesar de preso quando estourou a revolta foi condenado a seiscentos açoites. Os lideres do Clube da Barra foram rigorosamente punidos. Antonio Hauçá foi condenado a quinhentos açoites; Higino sofreu pena de quatrocentos açoites; Tomp a de quinhentos; Luis Nagô a duzentos açoites; e Tomás, "o mestre que ensinava a ler", a trezentos açoites em praça pública "aplicados interpoladamente como manda a lei".

Cinco foram condenados a morte por se negar a viver em cativeiro. No dia 14 de maio de 1835 foram fuzilados. Foram eles os libertos Jorge da Cunha Barbosa e Jose Francisco Gonçalves e os escravos Gonçalo, Joaquim e Pedro. Condenados a forca não encontrou o governo quem os executasse e por isso foram fuzilados com honras militares. 

Durante o processo negam delatar os companheiros, dizem desconhecer os que lideraram a insurreição, até mesmo seus vizinhos dizem ignorar.  Henrique Nagô, tomado pelo tétano das feridas que o mataria horas depois disse não conhecer quem o convidou para a revolta e morre em convulsões negando sempre até o momento final. Entre os que morreram nos combates, ou afogados, os que morreram dos ferimentos e mau tratos e os que foram executados foram mais de cem.

Do lado senhorial morreram apenas dois militares, um sargento da Guarda Nacional e um soldado de artilharia que lutou com louvor e matou um negro e feriu muitos outros antes de ser abatido. Mais três sofreram ferimentos e civis que foram atingidos mortalmente.  

Em 1844 houve nova tentativa de organizar mais um levante, mas foi rapidamente sufocado após a delação de outra escrava que havia se desentendido do companheiro. Pouco se sabe do destino de seus mentores ambos Malês.   

Nas conspirações contra a côroa e na guerra da independência do Brasil, quando os "senhores de escravos"tomavam partido ora por uma ora por outra facção, influenciados pelos novos ares de revolução provenientes da Europa, os negros foram sempre convocados à lutar e levados ao martírio por seus donos. Como recompensa pelo sacrifício supremo sempre era acenada a tão desejada liberdade ao fim do conflito, como argumento para motivá-los para o combate. Nessas guerras e revoluções demonstraram seu denodo e valentia reconhecida pelos muitos registros deixados na história  Finda a revolução ou a guerra, as promessas eram quase sempre esquecidas ao arrefecer dos bater dos tambores e os negros que tinham pego gosto pelas armas eram particularmente visados pela repressão, no período de paz, quando não chacinados, como ocorreu no sul, ao fim da Revolução Farroupilha. Quando era vencida a conjura e desterrados os conjurados, os"donos" levavam seus criados junto com os pertences pessoais, como semoventes, solidários forçados que eram os cativos na desgraça dos "senhores".

Bibliografia: Texto Adaptado de Rebeliões das Senzalas - Clóvis Moura - 1988 - Ed. Mercado Aberto 4° Ed.              

sexta-feira, 4 de março de 2011

Motim a Bordo - O Tráfico de Escravos


Os escravos ao serem transportados para as Américas, algumas vezes, pelas condições terríveis da travessia, amotinavam-se contra seus captores. Não era fácil tal tipo de revolta, as guarnições dos navios, sempre alertas, ao menor indício de agitação puniam drasticamente os cativos. Mas apesar de todos os cuidados tomados pelos traficantes, muitas vezes a carga viva em desespero dos navios negreiros se insurgia. Os sofrimentos por que passavam nas naus eram tão horrendos que preferiam a morte de um combate duvidoso, ou o suicídio puro e simples do que permanecerem nas condições subumanas a que estavam obrigados.

Podiam acomodar de quatrocentos a quinhentos nativos em uma pequena nau, como porcos num chiqueiro, a ponto de o próprio cheiro de suor e excrementos matar muitos deles. Os porões da coberta eram aferrolhados e somente umas poucas frestas existiam para o ar penetrar. O racionamento de alimentação durante a viagem, quase sempre em péssimas condições de conservação, garantia o lucro final da carregação para o capitão. A ração de água, quase sempre morna e contaminada, era pouquíssima e levava às pestilências, e depois de alguns dias de viagem obrigava a tripulação deitar corpos sem vida de africanos ao mar. Só as mulheres e os moleques que permaneciam na coberta era a melhor porção que conseguia chegar vivos ao destino.




Quando o capitão permitia, para garantir seus interesses e assim evitar grande mortandade, mandavam lavar a coberta e com esponjas correr o interior dela com vinagre. Todos os dias por pouco tempo, e por poucas horas mandavam vir em ferros para cima da coberta parte da escravatura embarcada para que possam tomar um ar,  conforme informam as testemunhas da época, tomando o cuidado de manter a maioria nos porões para evitar um levante.

Podemos imaginar, pelas condições que eram expostos os embarcados, o que significava uma revolta de escravos a bordo, Os negros enfurecidos pelo desespero, quando conseguiam dominar a tripulação do negreiro executavam verdadeiras matanças. Por isso, os castigos infligidos aos negros que se revoltavam ou tentavam amotinar-se durante a travessia eram terríveis. Relatos da época e testemunhos são inúmeros.




Do livro de bordo de um navio negreiro L’African, em 1738, extrai-se essa passagem: “Sábado, 29 de dezembro, Amarramos ontem os negros mais culpados, isto é, os negros autores da revolta, pelos quatro membros e deitados de bruços em cima da ponte, fizemo-lhes escarificações nas nádegas para que sentissem melhor suas faltas. Depois de ter posto as nádegas em sangue pelos açoites e escarificações, pusemos em cima pólvora, suco de limão, salmoura e pimenta, tudo pilado, juntamente com outra droga posta pelo cirurgião; e atiramo-lhes às nádegas para evitar que houvesse gangrena...”

Por uma simples suspeita de revolta em outro navio, conta o historiador, um capitão condenou dois negros à morte, em 1724. Uma negra escrava foi suspensa ao mastro e flagelada. Depois com tesouras, arrancaram-lhe cem filetes de carne até que os ossos aparecessem; o outro condenado foi estrangulado e arrancaram-lhe o fígado, o coração e o intestino. Seu corpo foi cortado em pedaços que os outros escravos foram obrigados a provar.

Outro relato, que dá uma idéia sobre as condições desses carregamentos humanos,  foi o do tradutor e oficial capelão da fragata Cleópatra, o inglês, Mr. Hill, embarcado no navio negreiro "Progresso", apresado pelas fragatas inglesas quando navegava ainda em mar calmo: "O navio era impelido por uma leve brisa que variava de rumo. Os negros dormiam ou estavam estendidos no convés. De tal maneira se enlaçavam uns com os outros em um pequeno espaço, que, à luz incerta do luar, mais pareciam um montão confuso de braços e pernas, do que corpos humanos. Pela 1 hora depois da meia-noite começou o céu a cobrir-se de nuvens, e o horizonte escurecia na direção do vento. Um aguaceiro corria sobre nós; caíram algumas gôtas d'agua e de repente principiou uma cena, cujos horrores não é possível descrever. Obrigados a obedecer imediatamente à voz de ferrar o pano, os marinheiros embarcados pelos negros estendidos no convés, não puderam manobrar como convinha. 'Façam descer os negros'. Gritou o capitão, e assim se fez. Mas o tempo estava pesado e quente e esses 400 infelizes, amontoados em um espaço de 12 toesas de longo e 7 de largo, com três pés e meio apenas de alto, em breve começaram a forcejar para voltar ao convés e respirar o ar livre. Repelidos, fizeram segunda tentativa. Foi preciso fechar-lhes as escotilhas de ré, e colocar uma espécie de grade de madeira na proa. Então os negros começaram a amontoar-se junto desta escotilha por ser a única abertura que deixava comunicar o ar. Sufocavam, e, estimulados talvez por algum terror pânico, entraram a juntar-se de tal forma, que impediram completamente a ventilação. Por toda a parte onde pensavam encontrar uma passagem, faziam os maiores esforços para sair; alguns saíram efetivamente por espaços que tinham cerca de 14 polegadas de longo e 6 de largo...No dia 13 de abril de 1843, quinta-feira santa, acharam-se no porão 54 cadáveres que foram lançados ao mar. Alguns desses infelizes tinham perecido de moléstia; porém muitos dos cadáveres estavam machucados e cobertos de sangue, Antonio, um espanhol de bordo da presa, contou-me que foram vistos alguns já prestes a morrer, estrangulando-se ou apertando a garganta uns dos outros. Um por tal modo foi comprimido que as entranhas lhe saíram para fora do corpo. A maior parte deles tinham sido calcado aos pés no delírio e sofreguidão com que buscavam ar que respirasse. Horroroso espetáculo era ver arrojado ao mar, um após outro, esses corpos torcidos, inteiriçados, manchados de sangue e de excremento!..." (Da obra:"Cinquenta Dias a bordo de um navio negreiro" de autoria do capelão da fragata Cleópatra)

Com esses relatos preliminares podemos ter uma idéia em que condições esses seres humanos eram trazidos de sua terra nativa para lucro de comerciantes e satisfação de mão de obra cativa para os senhores de escravos do Novo Mundo.

Pois bem, retornando à narrativa, em 1823 os escravos de um tumbeiro que se dirigia provavemente às costas da Bahia amotinaram-se e assassinaram vários tripulantes da embarcação. Vinha a nau com uma carregação de negros Macuas, quando, inesperadamente, estourou o motim, sendo os tripulantes alguns jogados pela amurada e espancados com achas de lenha. Certamente foi sufocado o motim, pois de outra forma não se explica o fato de haver chegado o navio negreiro à Salvador.


O motim foi inteiramente acidental e não teve prévia organização, com certeza fruto das péssimas condições do transporte e algum outro motivo fortuito durante a longa travessia. Tiveram a oportunidade do levante, coisa da maior dificuldade para a maioria dos cativos em semelhantes condições, quando eram levados para o Novo Mundo, pela experiência dos captores e sua vigilância constante, como já vimos.

Apesar do improviso, segundo os autos de acusação, havia um líder que se destacou, encorajou os companheiros e dirigiu a rebelião. Foi o preto ladino José Toto ou José Pato. O escravo Niquirita afirmou em juízo que o levante tinha sido "insinuado aos negros Macuas pelo preto ladino José Toto", depoimento que coincide com o de outro ladino implicado, o escravo Lauriano, que também afirmou nos autos: "quem aconselhara os negros novos para se levantarem fora o preto ladino de nome José Pato.



Ainda pelos depoimentos apurados, as armas utilizadas foram achas de lenha e outros objetos encontrados a bordo. Na matança aos brancos tripulantes se destacaram os pretos novos Macu, Mamatundu e Macutandu.

Esse pretos novos, todos Macua recém chegados do continente africano, acreditavam que, "se assim não fizessem, os brancos os comeriam na sua terra".

A idéia em sí não é de todo implausível, do ponto de vista dos cativos, pelas péssimas condições em que se encontravam era normal imaginar que seriam devorados após a travessia. O que não conseguiam imaginar era que iriam sofrer um outro tipo de devoramento. Suas pernas e seus braços iriam ser sacrificados ao deus da ganância dos brancos. Um negro durava em média 7 anos nas minas e 15 anos na lavoura, seus destinos estavam selados desde o primeiro dia do embarque.

Após o julgamento do motim as setenças foram proferidas. Poucos registros restaram para sabermos o destino dos acusados. Devem, porém, como era praxe nesses casos terem sido enforcados, pelo menos os líderes, já que a mão de obra importada era escassa. Por crimes menores, costumava a justiça na época condenar os cativos a 500, 600  ou até mais açoites. Nos autos sobre rebeliões das senzalas, essas penas eram comuns, pela simples presunção de culpa do indivíduo  na sua participação ou em apoio aos movimentos de libertação.


      

domingo, 27 de fevereiro de 2011

As Revoltas dos Malês na Bahia do Séc. XIX.

As insurreições dos Hauçá e dos Nagô, na Bahia, em 1807, 1809, 1813, 1826, 1827, 1828, 1830, e a grande revolução de 1835 tem uma fisionomia diferente das fugas e revoltas dos escravos em outras províncias, para a formação de quilombos e mocambos em busca da liberdade perdida. Seus objetivos imediatos, de impor uma alternativa ao sistema político e religioso vigente partiram de suas lideranças letradas de negros ladinos, islamizados que possuíam uma forte formação cultural em suas origens. 

O objetivo militar e político de suas revoltas era junto com os escravos do interior, seus iguais, estabelecer um emirado onde "tomariam conta da terra, matando os brancos, cabras e negros crioulos, bem como os negros africanos que se recusassem a aderir ao movimento, e só poupando os mulatos, destinados a servir de lacaios e escravos".

Essas eram pelo menos as causas do levante que permaneceram nos registros históricos oficiais e emanam dos autos dos processos contra os lideres revoltosos. A oposição entre os negros islamizados e seus pares não crentes fica envolta, quando restrita na questão documental, em penumbra, pois se eram isolacionistas, como alegam alguns autores,  é um paradoxo que nas revoltas conseguissem reunir tantos aliados contra seu inimigo comum, o estado escravista. As diferenças já relatadas pelos historiadores, analisadas  estritamente do ponto de vista étnico ou cultural, ficam mais claras nos termos utilizados pelos seus captores: "negro ladino", como o negro letrado que conhecia a lingua e sabia fazer contas, podendo exercer funções no comércio para os "amos" em oposição ao "negro boçal" que era tangido para os campos ou para a mineração, pois tudo desconhecia da terra, da lingua e das técnicas dos portugueses. Os primeiros tinham ascendência clara sobre os segundos. 

Na noite de 26 de maio de 1807 a primeira delação sobre o levante chega ao conhecimento do governador que imediatamente parte para sua repressão. Os escravos da capital e os do Recôncavo uniriam forças, segundo o plano estabelecido, para matar seus "senhores". Haviam estruturado com certa maestria seu plano de sedição, levando-se em conta ser essa a primeira revolta. Nomearam um capitão para cada bairro e designaram um "Embaixador" como oficial de ligação entre as comunidades. Aproveitaram o dia da procissão de Corpus Christi, quando a distração dos seus senhores, envolvidos com a litúrgia permitiria que se levantassem em armas e assumissem o poder. Com a delação o governador conseguiu saber a data e o nome dos capitães e o principal local de suas reuniões. Com os acessos da cidade vigiados pelas tropas e os capitães do mato enviados em perseguição dos escravos do campo seus lideres foram facilmente presos e severas medidas foram tomadas contra os fugidos e nenhuma referencia consta nos registros oficiais das punições infligidas a eles.

Continuaram então na surdina sua luta contra o cativeiro, sem esmorecimento, recomeçaram a organização de outro movimento ainda chefiado pelos Hauçás, embora já estreitamente ligados aos Nagô, que dele participaram ativamente. A aversão recíproca que lhes era natural foi deixada de lado em função da desgraça comum da escravidão.

Em 26 de dezembro de 1808, antes de completar um ano do seu levante, os Hauçás e Nagôs dos engenhos do Recôncavo embrenharam-se nas matas, fugindo dos seus "senhores". Combinaram aguardar os escravos da capital que a eles se uniram em 28 de dezembro. Em 4 de janeiro iniciam juntos as hostilidades, com grande violência, atacando indistintamente a todos, destruindo, incendiando propriedades e matando.

Seguem tropas de Salvador para combatê-los, indo alcançá-los dali a nove léguas da cidade, entrincheirados junto a um riacho sendo aí cercados e atacados. O combate violento que se seguiu levou a morte muitos dos negros fugidos e oitenta ainda foram capturados com vida. Com o sufocamento de mais esse levante ficou-se sabendo que pretendiam estender a luta por todo o Recôncavo baiano, especialmente nos distritos de Jaguaribe e Nazaré onde tinham aliados que a policia se apressou a prender. Para êxito do seu movimento haviam estruturado uma organização secreta, a Ogboni, que tinha como objetivo aliciar outros escravos para a luta contra o cativeiro. Sua penetração entre os cativos, como organização tradicional de inspiração religiosa e secreta, e sua grande influência entre os nativos da África desempenharam importante papel na organização da luta. Mais uma vez os registros oficiais omitem as punições aos revoltosos que com certeza foram violentas.

Após um período de relativa calma reacendia mais uma vez o espírito de luta daqueles que estavam sujeitos ao cativeiro. Os escravos de algumas armações, em torno de 600, marcharam na madrugada de 28 de fevereiro de 1813 em direção a Salvador. O grupo de insurretos cedo iniciou os ataques, destruindo senzalas, queimando as casas dos senhores. Mataram a um feitor em sua casa e seguiram depois para atacar Itapoã. Ali incendiaram mais algumas casas e conseguiram a adesão dos escravos que engrossaram seu contingente. Depois de atacarem e matarem alguns brancos naquela localidade, travaram franco combate contra as forças que foram enviadas para sufocar o levante demonstrando heróica bravura no fogo sustentado. No combate morreram cinquenta fugidos, tendo uns se enforcado ao pressentirem a derrota iminente e outros se atirado ao rio Joanes, para não caírem em mãos novamente de seus captores. O balanço de mortos entre os brancos foi de treze pessoas. 

Esmagado mais esse levante a ferro e fogo, os escravos começaram o planejamento de um novo movimento de grande proporções para aquele mesmo ano, comandado pelos Hauçá. Uma delação, entretanto, frustrou a iniciativa. Pretendiam aproveitar os folguedos de São João para atacar a Casa de Pólvora de Matatu de onde pegariam a munição molhando o resto que sobrasse para não ser utilizado contra os revoltosos e com isso atrair as tropas contra sí, desguarnecendo a cidade, onde seus aliados vindos do Terreiro e do paço do Saldanha tomariam a cidade degolando todos os brancos e finalmente assumiriam o poder. Por divergências internas quanto a data da sublevação um dos integrantes da conspiração delatou os demais. Os responsáveis pelo levante ao tomar conhecimento da traição conseguiram esconder os materiais que seriam usados na revolta e a policia não logrou encontrar nada que incriminasse seus organizadores.

Continuando as diligencias, foi proibida na festa de São João o uso de foguetes e rojões, com severas penas contra os infratores. Tambores e matracas anunciaram a ordem lida nas ruas de Salvador. Em seguida iniciaram-se as prisões, os escravos revoltosos foram processados e condenados 39 dos implicados na conjura. Doze faleceram nas prisões, vítimas de torturas e maus tratos, quatro foram condenados à morte e executados na Praça da Piedade, com assistência da tropa; inúmeros foram açoitados, outros degredados para Angola, Moçambique e Bengala.

Em 20 de março de 1814 estourou uma revolta na Vila de Cachoeira, em pleno Recôncavo, região agrária onde se estratificara uma nobreza das mais importantes da província. Às cinco horas da tarde daquele dia o juiz de fora de Maragogipe era informado de que os escravos do distrito de Iguape, pertencente a Vila de Cachoeira, tinham se sublevado e praticado desordens. Preparavam-se para seguir em marcha em direção ao Engenho do Ponto para juntarem forças com os cativos daquela senzala.


Cachoeira que depois seria elevada a condição de cidade, na época era Vila de grande importância para toda a província. Possuía orfanato, escola de latim e outros confortos, além da grande produção dos seus engenhos. Tão importante vila não podia ficar a mercê dos escravos fugidos sem que fossem tomadas medidas defensivas por parte das autoridades. Foi o que fez o juiz de fora de Maragogipe, para onde seguiam os sublevados, numa ameaça evidente aos moradores. Enviou um apreensivo ofício ao governador relatando os fatos e pedindo auxílio de forças.


Como prevenção foram colocados guardas da milícia nos pontos onde os escravos poderiam passar, foi mobilizada toda a gente da Ordenança e da Justiça para reforçar a guarda daqueles locais. O sargento-mor das milícias de Cachoeira que se encontrava em Maragogipe partiu sem demora para  a vila ameaçada a fim de comandar o combate aos negros fugidos.


A região de Iguape foi incendiada pelos sublevados e o sargento-mor logrou prender três negros hauçás que serviam de ligação entre os engenhos. As demais prisões e as conseqüências dos incêndios não foram documentadas. O certo, no entanto, é que os escravos continuavam se revoltando no Recôncavo baiano, pondo em risco os lucros, a estabilidade e a tranqüilidade da classe senhorial. Suas solicitações constantes de proteção através de ofícios junto ao governo atestam o clima de temor em que estavam constantemente possuídos. 


Conforme os registros históricos, a revolta da Cachoeira, em 1814, teve prosseguimento nos anos subseqüentes levando os senhores-de-engenho a pedir a formação de um destacamento para proteger seus bens e suas vidas e oferecer subsídios para armar e manter os soldados e para efetivar as medidas repressivas necessárias contra as sublevações.


No ano de 1822 estourou a rebelião na Vila de São Mateus, com o objetivo de tomar o poder e instalar um reinado nos moldes dos que existiam na África. Segundo os documentos, os negros escravos e forros organizaram uma conjuração contra todos os brancos e pardos. Ao que parece a revolta foi logo sufocada e as prisões se sucederam. Os líderes foram enviados a ferros para a capital. Os escravos se chamavam Claudino de Jesus e Luís Benguela, sendo o último, conforme os autos, o que seria aclamado rei. Deles se perdeu notícia pela falta de documentos remanescentes sobre a devassa.


No ano de 1826 formou-se um quilombo nas matas do Urubu, num sítio denominado Cajazeira, perto de Salvador. Começou sua atividade com pequenas escaramuças nas redondezas e preparavam-se para um ataque de grande envergadura à capital. No dia 15 de dezembro daquele ano praticaram alguns ataques contra os lavradores e seqüestraram uma menina que foi "muito maltratada" e teve de ser recolhida ao Hospital da Misericórdia. Em conseqüência dos atentados praticados pelos quilombolas, alguns capitães-do-mato foram incumbidos de prendê-los e entraram em luta nas matas onde se refugiavam. Os fugidos opuseram grande resistência e na luta mataram dois capitães-do-mato e feriram um terceiro. Tropas militares compostas de 20 praças do Batalhão de Pirajá e mais 12 soldados e um cabo da Divisão Militar vindos da capital comandados pelo Coronel Francisco da Costa Branco foram enviados com presteza e fizeram junção na baixa do Urubu.

A tropa que partira da capital encontrou no caminho um capitão-do-mato e mais dois crioulos gravemente feridos na refrega. Ao chegarem no campo foram percebidos pelos vigias dos quilombolas que imediatamente deram alarme fazendo uso de uma guampa de boi por corneta. Foi dada ordem de atacar para a coluna pelo oficial comandante.


A essa tropa que havia reunido cerca de trinta homens, opuseram-se cinquenta negros fugidos usando como armas apenas facas, facões, lanças e lazarinas e mais outras armas curtas improvisadas aos gritos de Mata! Mata! lançando-se bravamente sobre os soldados.


A tropa abriu fogo sobre os guerreiros que, depois de alguma resistência, abandonaram o campo deixando para trás quatro mortos, três homens e uma mulher. Aproveitaram o tardar da hora para esconderem-se no mato protegidos pela escuridão da noite. Pretendiam se reorganizar. Nessa ocasião prenderam a escrava Zeferina que lutou bravamente, de arco e flechas nas mãos, antes de ser submetida pelos soldados. Além disso grande quantidade de provisões foram apreendidas.


A policia iniciou a repressão  e suas tropas seguiram para os lugares conhecidos de reunião dos negros e considerados suspeitos. Começaram as batidas nas matas sendo varadas casas de negros e pardos  e efetuadas várias prisões. Farto material religioso foi aprendido. Entre os presos um soldado do 1° Batalhão da 2° Linha, Cristovão Vieira. 


Todos os presos foram recolhidos no Forte do Mar, com exceção do soldado que foi recolhido ao quartel. No dia 30 de maio de 1827 faleceram na prisão, pelas torturas inflingidas, os negros José e Paulo. Um pai de santo chamado Antonio que dirigia uma Casa de Candomblé nas proximidades do Quilombo foi preso junto com os demais.


Tudo indica que esses quilombolas pretendiam realizar uma insurreição de maior envergadura com o auxilio dos escravos que viviam na capital  e que pretendiam reunir-se com eles. A falta de organização e a exposição excessiva de seus objetivos com os ataques preliminares de menor monta atraindo a repressão prematuramente leva a crer que suas ações foram motivadas por questões além da sua vontade, levados pelas circunstâncias dos acontecimentos dos quais não tinham controle absoluto. A falta de armamentos eficazes corrobora com a idéia de falta de planejamento dos revoltosos que não dispunham sequer de armas de fogo.


Mais uma vez deixamos de saber o destino desses revoltosos por falta de registros, mas podemos inferir que sofreram as penalidades previstas nesses casos, quase sempre brutais, visando dar o exemplo aos demais cativos através da opressão do medo.


No dia 22 de abril de 1827, ainda nem haviam terminado as repressões contra o movimento anterior e os escravos do Engenho Vitória se sublevaram, seguindo o exemplo de seus companheiros que sucessivamente vinham se revoltando contra a opressão dos "senhores". Foram violentas as suas ações só sendo debelada a insurreição dois dias depois. Pouca documentação restou desses acontecimentos.

Pouco menos de um ano depois, no dia 11 de março de 1828 novo levante foi registrado. Na madrugada daquele dia uma porção de cativos dos engenhos próximos a Cabrito uniram-se a parte amotinada dos escravos da capital e se prepararam para atacar Salvador. Reunidos na Armação, plano que já haviam intentado antes, em 1826, foram no entanto surpreendidos pela policia, que contra eles marchou e deu com eles nas imediações de Pirajá. Ali o corpo de polícia e o 2° Batalhão de Linha deram combate aos insurretos matando muitos e levando os sobreviventes para serem punidos.

No dia 10 de abril de 1830 pela manhã, por nada, como de improviso, os violentos acontecimentos foram sucedendo em escala crescente. O primeiro ataque dos negros revoltosos foi contra uma loja localizada na Ladeira da Fonte das Pedras, para obterem armas para dar prosseguimento ao levante. Alcançaram seu objetivo inicial, pois após pequena resistência do proprietário, arrecadaram doze espadas de copos e cinco "paraíbas", deixando ferido o dono do estabelecimento, além do caixeiro, atingido com forte cutilada na cabeça e uma estocada na nádega.

O número de escravos em luta aumentou imediatamente. No início do levante era pequeno o número de revoltosos. Uns dezoito a vinte segundo registram os autos do processo contra um dos implicados. Já no fim da refrega havia mais de cem.

Conseguido o primeiro assalto para obter armas, marcharam para atacar uma casa de ferragens. Ali encontraram tenaz resistência da parte do proprietário e dos seus empregados, que reagiram armados de bacamarte e espadas. Ante a inesperada resistência, os revoltosos resolveram prudentemente recuar, apenas conquistando mais um "paraíba". Seguiram em direção a outra casa comercial e, após rápido ataque se apoderaram de mais cinco.

No caminho a multidão de sublevados vai crescendo. Os cabeças de motim, como diriam os autos, empunhavam espadas e vestiam camisas azuis e vermelhas, vão seguindo a frente do grupo, atacando os armazéns de negros "novos" na Rua do Julião, de onde mais cem negros se incorporam imediatamente ao levante. Era uma luta de vida e morte para recuperar seu bem mais precioso, a liberdade. 

Depois de libertarem os cativos daquela armação, deixando gravemente ferido o guarda de escravos marcharam para atacar a guarda da polícia de Soledade, composta de sete soldados e um sargento. Conseguem pelo maior número vencer a guarda. Entretanto o planejamento deficiente de seus líderes prejudicam as ações bélicas e dão tempo para os "senhores" recobrarem a coragem.

As forças da polícia e mais alguns civis investem sobre eles, obrigando-os, depois de sangrento combate em que morreram mais de cinquenta e ficaram prisioneiros quarenta e um, a recuarem para as matas de São Gonçalo, onde tentam reagrupar as forças. A escolta militar em perseguição não lhes dá folga e, cercados por todos os lados, são definitivamente batidos pelo "estado senhorial". Nos autos o promotor pedirá punição exemplar aos faltosos, para segundo ele: "conservação do sossêgo público e desagravo da Sociedade ofendida".

A repressão caiu com força contra a comunidade dos cativos. Os pretos eram espancados nas ruas, linchados, apedrejados, . Os soldados prendiam qualquer um escravo que encontrassem. Depois disso as sentenças foram proferidas: os negros Nicolau e Francisco são condenados a quatrocentos açoites cada, "dados interpoladamente, cinquenta por dia cada vez", além de arcarem com as custas dos autos. O advogado de defesa de um dos réus denunciou a repressão injusta a que muitos foram submetidos pela sedição de poucos. Acusou abertamente os assassinatos e linchamentos que se seguuiram praticados pela polícia e pelos civis: "matavam indistintamente a quantos encontravam dispersos, sejam ou não cúmplices", e que inúmeros foram mortos pelos "soldados e povo". A revolta foi sufocada com sangue.

        

O Islã no Brasil

Na Bahia os Hauçás exerceram decisiva ascendência sobre os outros negros sudaneses, principalmente os Tapas e os Nagô e com esses grupos foram os principais responsáveis pelas sublevações de escravos no séc. XIX.  Essas violentas insurreições não tinham só caráter exclusivamente econômico, mas segundo os historiadores, tinham também aspectos religiosos envolvidos em suas causas. 

Foram os negros vindos do Sudão que introduziram o islamismo no Novo Mundo. Sua história na Bahia é das mais interessantes. O seu grupo foi relativamente pequeno, mas sua influência foi consideravelmente ampla. Provinham dos domínios africanos de Sokotô, Katsena e Kano, na Nigéria do norte. Eram altos e robustos, fortes e trabalhadores. Usavam como outros negros maometanos um pequeno cavanhaque. De vida privada regular e austera, não se misturavam com os outros escravos. Alguns pretendiam ter sangue filamin; parece porém que os desse grupo sejam mestiços com os Fulas.

Outras etnias, como os Mandingas, termo que deriva de Malinkes, isto é, naturais de Mali eram guerreiros cruéis em sua terra que tinha o hipopótamo (mani) como seu animal totem. Não obstante a influência maometana eram considerados grandes mágicos e feiticeiros, daí o sentido adquirido de mandinga como sortilégio mágico, coisa feita, despacho que os negros consagraram no Brasil.

Na Bahia, suas insurreições foram a continuação de suas lutas religiosas e de conquista levadas a cabo pelos negros islamizados do Sudão. Arrancados a força de seu continente, esses negros aguerridos, valentes conquistadores não se sujeitaram à escravidão no Brasil.

Trouxeram consigo a idéia da Jihad, a Guerra Santa, na tentativa de impor o domínio do Islã como movimento contra aculturativo em oposição aos seus senhores brancos e contra outros negros e mestiços que   não adotassem a verdadeira fé e aderissem ao seu movimento.

Seus locais de reunião eram os templos maometanos onde a difusão da sua fé atingiu seu auge na metade do séc. XIX. Seus chefes eram os Alufás ou Marabus, que exerciam absoluta autoridade sobre os subordinados. Os documentos apreendidos na insurreição de 1835  escritos em caracteres árabes, eram mandingas contendo Suras do Alcorão, palavras e rezas cabalísticas.

Onde negros Hauçás existiam a revolta era latente. Depois da revolta de 1813, quando foram quase totalmente massacrados pelos brancos e os sobreviventes deportados para a África tornaram-se em número reduzidíssimo. Mesmo assim unidos aos Nagô e a outros grupos não cessaram suas atividades revolucionárias. Os Tapas islamizados, chamados também de Nifês ou Nupês foram os que mais se fundiram aos remanescentes Hauçás na Bahia, em número também reduzido empreenderam grande resistência contra o escravismo. Esses e outros grupos sudaneses conservaram seus hábitos e crenças originadas nas terras nativas porém pelo número reduzido aos poucos foram se extinguindo. Conforme informam os registros da época eram maus escravos; altivos e insubmissos, suicidavam-se e matavam os "donos" com freqüência.

Os Mandingas mantinham por mestiçagem traços dos Hamitas procedentes do vale do Nilo e pode-se inferir que eles resultam da mistura com semitas da África do Norte. Já nos fins do séc. XIX e começo do XX não existiam mais Mandingas puros, mas os termos mandinga e mandingueiro sobreviveram aos tempos com o sentido de feitiço, feiticeiro, lembanças dos amuletos e práticas mágicas desses negros maometanos.

Os Fula ( Fulah, Felatah, Fulbe, Filanin ) são considerados descendentes dos antigos egípcios, o certo é que eram pastores nômades, grandes guerreiros em sua terra, com extraordinário poder de adaptação. Assimilaram o islamismo no meio do séc. XVIII e foram um dos seus principais propagadores no Sudão. Desta fusão resultou uma grande diferenciação de feições entre essas populações e outros africanos. Muitos viajantes acreditavam tratar-se de africanos com traços europeus: cabelos menos encaracolados, feições finas, coloração mais clara da pele. Foi dessa cor da pele que no Brasil surgiram as denominações: negro fula, cor fula para designar africanos de pele mais clara, que tenham descendência Fula ou não.


Livro encontrado no pescoço de um africano morto após a revolta de 1825


A cultura maometana foi portanto introduzida no Brasil pelos negros sudaneses e hamito-semitas. Foram denominados de uma forma geral de Malês entre os brasileiros. Este termo tinha conotação pejorativa entre os verdadeiros maometanos. O termo Mulçumi é privilegiado entre os negros baianos com as corruptelas: muçulumi, muçurumi, muxurumim, muçuruhi. Seus cultos, registrados nas macumbas do Rio de Janeiro, preservavam alguns aspectos fetichistas cujas práticas estão hoje sincretizadas na fusão com outras religiões afrobrasileiras. Adoravam a Allah e a Olorun-uluá ( combinação de Olorun e Alá ). Na sua condição mais pura seus ritos não admitiam culto a imagens e a ídolos. Apesar disso não se separavam de seus talismãs; eram considerados como grandes feiticeiros, admirados e temidos pelos outros negros. Esses talismãs eram na maior parte fragmentos e inscrições em caracteres árabes de Suras (Versículos) do Alcorão, em pedaços de papel, em pequenas tábuas, ou em outros objetos que carregavam e guardavam consigo. O grão-sacerdote é chamado Lemano, Limane ou Limano (corruptela de Ulemá). É o chefe religioso supremo, senhor das práticas dos cultos e dos sortilégios. Nas cerimônias religiosas é assitido por um acólito, o Ladane ou Ladano. Os sacerdotes comuns tem a designação de Alufás, nome que no Rio de Janeiro, por extensão passou a designar os Malês. Há ainda os conselheiros e juízes, os xerifes, geralmente pessoas idosas cujos conselhos são procurados. 

Denominavam Salah a oração obrigatória, de onde provem a expressão "fazer sala" criada pelos Malês. Recolhiam-se cedo em seus aposentos evitando o sereno. Às quatro horas da manhã levantavam-se para "fazer sala" que é a oração da manhã e depois a noite. A cerimônia consiste primeiramente de  uma ablução: sem trocar palavra lavar o rosto, as mãos e a planta dos pés, fazem o banho de assento e vestem um camisão, calças e enfiam na cabeça um gorro com borla caída, tudo de algodão bem alvo. Munidos então de um rosário, o Têcêba, com 50cm de comprimento e noventa e nove contas grossas de madeira terminado com uma bola em vez da cruz. dão começo a oração de pé sobre uma pele de carneiro. Os homens colocam-se a frente e as mulheres atrás. Quando rezam pelas contas menores do rosário conservam-se sentados; passando as contas maiores levantam-se. Nesse momento, com as mãos abertas e tendo o corpo inclinado em sinal de reverência dizem: "Allah-u-acubáru", no sentido de louvar à Deus. Em seguida levantam os olhos para o alto e os baixam com uma saudação; com as mãos no joelho fazem um sinal de continência com a cabeça; proferem então algumas palavras e sentam-se de lado continuando a rezar pelas contas menores.


Quem podia executava esse ritual cinco vêzes ao dia: o primeiro - "Açubá"; o segundo - "Ai-lá"; o terceiro - "Aà-a-sari"; o quarto - "Ali-mangariba"; o quinto - "Adixá". Finalizavam a oração dizendo: "Ali-ramudo-li-lai" (Louvor ao Senhor do Universo). Para qualquer ato que o crente tinha que praticar antecedia a expressão: "Bi-si-mi-lai" (Em nome de Deus Clemente e Misericordioso). Terminada a oração cortejavam-se uns aos outros saudando: "baricada subá" (Deus lhe dê um bom dia). O lugar da casa onde faziam sua prática religiosa chamava-se "ma-ça-la-si" (oratório).


Apesar da proibição no Brasil colonial ao seu culto islâmico, os Malês mantinham suas práticas  mágicas, evocando espíritos (aligenun=daimon). Costumavam invocar o poder mágico de seus talismãs escrevendo em uma tábua de madeira e lavando-a depois com água para infundir a quem a bebesse virtudes poderosas. Dependurados ao pescoço traziam ainda orações com o "Selo de Salomão" inscrito acondicionados em uma bolsa que protegia seu portador contra os feitiços. Na privacidade de seu lar mantinham os restritos preceitos do Alcorão. 


Em Salvador, a ladeira do Taboão, o largo do Pelourinho, a ladeira do Alvo foram os redutos preferidos de Hauçás islamizados. Conservavam suas indumentárias nativas na vida privada: a túnica branca (o abadá ou camisú), o gorro (filá) de onde pende longa faixa branca. Suas mulheres usavam turbantes, panos da costa vistosos, saias rendadas, chinelinhos, que passaram a caracterizar o tipo da "baiana".


Observavam a circuncissão (Kola) que praticavam aos dez anos de idade. Só não podiam realizar a peregrinação à Meca. Mas não esqueciam a época do jejum anual ( o Ramadã ) que denominavam "Assumy". O jejum coincidia com a festa do Espírito Santo dos católicos e durava toda uma lunação. O tabu alimentar era rigorosamente observado durante o período. Só comiam inhame cozido com azeite de dendê, arroz pisado com água e açúcar, ou leite e mel de abelhas. As refeições  eram feitas às 4 horas da madrugada e às 8 horas da noite. Terminavam o jejum com uma grande festa que chamavam Saká. Sacrificavam neste dia um carneiro, e culminava a festa com uma Salah pública em que trocavam presentes.


Isolados, altivos e insubmissos, reagiram à escravidão. Promoveram freqüentes revoltas e odiavam  seus próprios companheiros de infortúnio, não maometanos, e aos brasileiros mulatos que consideravam inferiores. Com exceção de certos aspectos religiosos, a cultura afro-maometana não criou raízes autônomas no Brasil. Os massacres, as punições e as deportações condenaram seus, cada vez menores, grupos étnicos ao progressivo desaparecimento em seu estado puro, bem como o choque cultural com os costumes da colônia, bem mais permissivos entre as populações mais simples que desviaram as gerações posteriores dos rigorosos costumes de seus antepassados escravos. Restam apenas algumas sobrevivências, as linhas Muçurumim das macumbas cariocas e outros ritos na religião afrobaiana.   

sábado, 26 de fevereiro de 2011

O Islã na África e no Brasil


No séc.VI d.C. alguns principados da Núbia e o Reino da Etiópia já eram estados cristãos fora da área de influência do Império Romano. A Núbia, civilização grandiosa que existiu desde priscas eras, localizada ao sul do Antigo Egito, na forquilha formada pelo encontro do Nilo Branco com o Nilo Azul foi governada por sucessivos reinos e até elegeu um faraó no mundo antigo. Atualmente denominado de Sudão é uma região islamizada enquanto na Etiópia o cristianismo permanece como a religião da maioria. Desde o ano 100 haviam cristãos pregando sua fé a partir do norte, de Alexandria no delta do Nilo e no séc. IV o evangelho era pregado na Núbia pelos peregrinos que vinham do Egito pelo rio Nilo em direção à sua nascente. Os povos semitas eram os principais responsáveis pelo intercâmbio de mercadorias entre a Europa, África, Pérsia e Índia desde a época do Império Romano.

Nesta época, Axum, nas terra altas da Etiópia, próximo da fronteira da atual Eritréia tornou-se um reino importante e rico submetendo os seus vizinhos. Sua casa real foi a primeira, fora da influência  romana, a adotar o cristianismo no ano 500 d.C., um século antes de Maomé fundar sua religião baseada no Alcorão. O cristianismo chegou através de comerciantes que vinham pelo Mar Vermelho e traziam junto os pregadores dessa fé. Tanto o cristianismo quanto posteriormente o islamismo tinham em comum a prática do proselitismo, isto é, diferente do judaísmo onde o praticante deve possuir origem familiar judaica para professar a religião dentro de uma comunidade fechada, qualquer pessoa pode converter-se ao cristianismo ou islamismo desde que faça profissão de fé e aceite os preceitos das respectivas religiões. Na África encontraram solo fértil para arrebanhar adeptos, uma população sensível aos seus apelos de fé em busca de um tratamento igualitário. Logo ambas as religiões iam impor grande pressão na região com a vinda dos mercadores árabes que comerciavam com esses povos e estabeleciam relações duradouras. 

Nesta época (de 560 a 632), Maomé, o profeta islâmico, perambulava entre Meca e Medina com suas pregações e rapidamente sua religião se difundiu pelo norte da África. O termo Islã se refere à submissão a Deus como um paradigma de proselitismo monoteísta. A partir de 660, os seguidores de Maomé conquistaram toda a península Arábica e começaram a expansão de seu império baseado na fé islâmica, religião que iria causar grande influência na África Negra.

Desde o séc. VII os povos do norte da África chamados bérberes adotaram o islamismo. Povos nômades que até hoje habitam o Saara, os Azenegues e Tuaregues, na época criavam camelos e conheciam as rotas seguras e oásis das regiões saarianas onde se dedicavam ao pastoreio e comércio de caravanas. Onde hoje se localizam a Líbia, a Tunísia, a Argélia e o Marrocos, na costa mediterrânea, estavam localizados os portos por onde chegavam as mercadorias trazidas pelas caravanas através do Saara e pelo Sael. Esses povos nômades eram os guias que tornavam possível o transito de mercadorias por região tão inóspita. O camelo de duas corcovas e o dromedário com uma só corcova, animal que foi introduzido no séc. IV a partir do Egito vindo da península Arábica, serviu para unir o Sael ao norte da África e ao mediterrâneo e facilitar as comunicações como transporte ideal  de cargas, graças a sua robustez e resistência, pois é capaz de permanecer dias sem nada comer ou beber, através das longas jornadas envolvidas pelo deserto. As cargas seguiam assim para península Arábica e para o Mar Vermelho, por terra e por mar.

Esses comerciantes tuaregues ligavam toda a região do Sael que os Árabes denominavam Bilad-Al-Sudan, que significa terra de negros, onde hoje estão localizados os países do Sudão, Chade, Níger, Mali, Burquina Faso, Mauritãnia e Saara Ocidental difundindo a fé islâmica por toda essa ampla área de penetração. Foi  dessa influência que se formaram os antigos impérios de Gana (do séc. VI ao séc. XIII ), do Mali ( séc. XIII até o séc. XVII ) e Songai ( séc. XVII até o séc. XVIII ). As condições geográficas e físicas do delta interior do rio Níger, como é chamada essa região localizada ao sul do Saara, onde o rio faz uma acentuada curva para o sul, formam uma rede de rios e canais interligados que a fertilizam, facilitaram a constituição desses impérios africanos.

A fertilidade da terra favoreceu o surgimento de populações agrícolas e formação de cidades que através dos  meios fluviais trocavam mercadorias com o interior e as áreas de floresta, em contato permanente com as caravanas que cruzavam o Saara até os portos mediterrâneos. As cidades mais freqüentadas pelos comerciantes no séc. VI eram Tombuctu, Gâo, e Jené, no atual Mali. Do ano 100 ao séc. XIX a cidade mais importante dessa região foi Tombuctu. Era ponto de descanso obrigatório das caravanas que atravessavam o deserto. Foi considerada o elo entre a África Negra, o mundo islâmico e a Europa, sendo o centro dos impérios que ali existiram. 

Os povos que ali habitavam eram diferentes dos bérberes, povos arabinizados com feições semitas. Suas populações eram principalmente Mandingas e Fulas, mas coexistiam também outros grupos com diferentes culturas que conviviam em relativa harmonia. Eram agricultores, pastores, tecelões, ceramistas e trabalhavam o couro. Nas cidades se concentravam os ricos comerciantes, administradores, e artesãos. Mantinham suas raízes culturais através da tradição oral, histórias eram transmitidas através das gerações sobre os antepassados, seus deuses e heróis, suas regras e crenças, guardando e preservando suas tradições tribais. Habitantes das savanas e florestas possuíam diferentes culturas. Na região do rio Senegal que segue direto para a costa, no Oceano Atlântico vivam Jalofos, Sereres, Bambaras, Mandingas e Fulas, muitos deles convertidos ao Islã desde o séc. X. Na bacia do rio Gambia, ao sul do Senegal, os grupos predominantes eram os Beafadas, Banhuns, e também Mandingas. Das zonas de cabeceira dos rios Senegal e Níger, no Futa Jalom, os Fulas iam se espalhando para o leste. Na foz do rio Volta viviam os Acãs, em terras auríferas. Seus vizinhos a leste eram os povos conhecidos como Iorubás. Os Hauçás habitavam mais o interior, em zonas de savana, mais ligados ao Sael. Existiam reinos que ocupavam áreas consideráveis com grandes riquezas, arquitetura elaborada e fabricação de artefatos de grande beleza.




Outra cidade que se destacava era Ifé, espécie de cidade-mãe que deu origem a organização política e social das outras localidades da chamada Iorubalandia ou Iorubo, a atual Nigéria. Dessa região saíram grandes contingentes escravizados para as Américas, comércio que passou a ter valor de importância maior a partir do séc. XVII mais que outros frutos da terra ou minerais preciosos. A abundante oferta de mão de obra escrava, prisioneiros de guerra e populações sequestradas de suas aldeias no interior do continente compunham os contingentes de pessoas que eram vendidas aos comerciantes europeus atravessadores  que levavam a mercadoria viva ao Novo Mundo.

Foi a partir do séc. VII que o Islã se expandiu pelo norte da África, pelo vale do rio Nilo, pelas rotas do Saara e pela costa oriental do Mar Vermelho, do golfo de Aden até o oceano Índico. Exércitos e pregadores, uns submetendo, outros predicando suas idéias e convencendo o povo que vivia em quase escravidão iam difundindo os dogmas da nova fé pelo continente africano. No início do séc. VIII os árabes ocuparam a costa oriental africana forçando os Abissínios a se refugiar nas terras altas da Etiópia onde puderam manter sua cultura cristã.

O norte da África se converteu ao Islã entre os séculos VII e IX, e no séc.XI povos da região do Marrocos adotaram a religião, levando-a para as zonas dos rios Senegal e Níger. Os povos do Sudão central incorporaram a fé islâmica a partir do séc. XIII. Seus vizinhos a leste, como Darfur e  Senar receberam essa influência a partir do mar vermelho. Até o séc. XIV todo o Sael havia sido islamizado. Zanzibar, na costa oriental às margens do oceano Índico também adotou a mesma fé. 

No Egito, em todo o norte da África, no Magrebe, no delta interior do Níger e nas cidades do Sudão central, na região do lado Chade o Islã foi adotado por muitas comunidades, muitas vezes adquirindo características particulares das crenças africanas onde foi introduzido. A ligação com as cidades sagradas de Meca e Medina dependia das caravanas que iam e vinham trazendo mercadorias, notícias e pessoas que seguiam em peregrinação. Ulemás, transmissores dos conhecimentos se estabeleciam nas localidades orientando a leitura do Alcorão, seu livro sagrado, e a discussão de seu conteúdo. Pretendiam assim garantirem a fidelidade aos preceitos religiosos islâmicos e dirigiam as escolas corânicas compostas de jovens estudantes.                         

No séc. VIII o islamismo estava presente desde a Pérsia, o atual Irã, até a península Ibérica, em toda a Arábia, seu berço, o Império Otomano e pelo norte da África. Até os dias de hoje, junto com o judaísmo e o cristianismo é uma das maiores religiões monoteístas originadas na cultura judaico-cristã e no helenismo, com aproximadamente um bilhão e meio de crentes espalhados pelo mundo. 

Esta fé compreende regras de comportamento, maneiras de viver e de governar próprias dos povos semitas árabes influenciados e inspirados pelas escrituras sagradas de judeus e cristãos. Segundo seus dogmas diferentes povos e etnias podem ser agregados em torno de idéias comuns capazes de produzir uma comunidade una que denominaram de "UMMA". De inspiração igualitária preconiza que todos os crentes possuem os mesmos deveres perante Deus, desde as classes mais baixas até seus monarcas e dirigentes.

Os cinco principais deveres de todo adepto do Islã são:

- A profissão de fé, isto é, a declaração de crença em um só Deus (Só Deus é Deus) e em Maomé como seu profeta.
- A oração cinco vezes ao dia voltado com o corpo em direção à Meca.
- O pagamento de um imposto religioso
- O jejum no mês do Ramadã
- A peregrinação à Meca pelo menos uma vez na vida, onde está localizada a sagrada "Caaba", uma pedra preta de origem  celeste onde antes praticavam seus cultos animistas.

Da expansão islâmica na África surgiu na região do Saara e Sael um grupo lingüístico formado por povos falantes de línguas afro-árabes formada entre os africanos autóctones e levas de migrantes vindos do Oriente Médio que se fixaram na costa mediterrânea, no interior do deserto, vale do Nilo, na Etiópia ao leste, do chifre africano até o atual Marrocos, então conhecido como Magrebe, que significa oeste distante em árabe, populações essas formadas de bérberes descendentes dos Tuaregues e Beduínos vindos da península Arábica.

Mais ao sul viviam os povos falantes de línguas nilo-saarianas, nômades criadores de gado da região do Saara e do Sael, mas que formaram cidades onde o comércio e o artesanato floresceu. Suas elites, comerciantes, plantadores de grãos e administradores geralmente se convertiam ao islamismo africanizado enquanto os agricultores, pastores e artesãos que viviam no interior mantinham suas religiões animistas tradicionais.

Traficante de Escravos - Exerceu seu funesto negócio até 1905 sem ser importunado
Nem a adoção do islamismo, nem a do cristianismo, ambas religiões éticas e com pretensões igualitárias, conseguiram afastar do povo africano o crime e o sofrimento nefasto da escravidão, que entre suas tribos originalmente tinha uma conotação tradicional agregária, mas transformada em processo econômico pelos árabes e europeus invasores, durante cinco séculos, levaram ao cativeiro e ao sequestro para envio às terras distantes milhões de indivíduos, que na sua passagem de um continente ao outro, os poucos que sobreviveram, iam depois ficar a mercê  das sevícias e da ignomínia do trabalho servil imposto pelos castigos e açoites do seus "senhores".