Este espaço é uma homenagem ao grande sociólogo e historiador Gilberto Freire criador da obra homônima. Seu objetivo é a divulgação de latinidades, africanismos e gentilidades e o desvelamento desse povo apaixonante e apaixonado denominado latino americano e suas origens.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

SOCIEDADES AGRÍCOLAS URBANAS DO PERÍODO CLÁSSICO ANDINO E ESTADOS FORMALIZADOS DO PERÍODO PÓS-CLÁSSICO ANDINO.

Autora: Flora Selma Trein Kling

1 PERÍODO CLÁSSICO ANDINO
O período clássico andino é caracterizado pela existência de sociedades agrícolas urbanas, que são grandes construtores e possuem um sistema religioso bem definido. Essas sociedades são expansionistas, portanto a guerra e a dominação cultural estão muito presentes no registro arqueológico. Está presente também o surgimento de técnicas especializadas na produção de cerâmica, tecidos e na fundição de minerais como o cobre, de acordo com Fiedel:
"Las ciudades y los estados se desarrollaron; fueron construidos sistemas de irrigación a gran escala em los valles de la costa; las poblaciones alcanzaron su máximo tamaño en muchas áreas; y los artesanos llegaron a ser excelentes ceramistas, tejedores e metalúrgicos. La aparición de los estados también tiene su lado negativo: la guerra se hizo más común y se construyeron fortificaciones y ciudades amuralladas” (FIEDEL, 1996, p.361)
Nessa época existe um grande aumento populacional, que se relaciona com a domesticação e o refinamento de técnicas de cultivo de plantas “[...] el desarrollo demográfico está em intima relación com las mayores possibilidades de vida que se dan em este tempo.” (LUMBRERAS, 1980, p.97). Embora a base da alimentação fossem os tubérculos e o milho, na costa são encontrados restos de animais que mostram que a pesca ainda era uma atividade importante assim como a caça na serra ainda que “[...] debido a los interesses agrícolas, la poblácion serrana tiende a trasladarse a lugares cercanos a los vales susceptibles de oferecer terrenos de cultivo.” (LUMBRERAS, 1980, p.95) além de indícios de domesticação de cachorros e lhamas (LUMBRERAS, 1980, p.97).
Na cultura Chavín se inicia a construção de grandes centros cerimoniais na zona andina central (LUMBRERAS, 1980, p.98) assim como aparecem figuras mitológicas usadas mais tarde pelos Tiahuanaco, como o chamado deus dos báculos e figuras felinas antropomorfizadas. As sociedades desse período são bastante estratificadas, e sacerdotes aparecem em cerâmicas e tapeçarias como figuras centrais sociais, politica e economicamente, o autor Lumbreras explica a importância do sacerdócio além do culto:
"Debe suponerse que al lado del oficio cultista, las funciones sacerdotales pudieron alcanzar incluso el control de certo tipo de trabajos tales como los relacionados com la hidráulica, el cultivo, etc.” (LUMBRERAS, 1980, p.110)
No entanto a influencia Chavín estava muito restrita por volta de 200 A.C o que possibilitou o surgimento de culturas diversas. A civilização Mochica é conhecida pelas cerâmicas que mostram atividades do cotidiano e são importantes para compreender como essas pessoas viviam e que tipos de deuses cultuavam, a temática das pinturas é bem variada:
[...] representaciones realistas de dioses, ceremonias, atividades manufactureras, caza, pesca, agricultura, edificaciones, guerra, rituales de la corte, crimines y castigos, recaudación de tributos, efermedades y actividad sexual.” (FIEDEL, 1996, p.361)
As cerâmicas também são uma boa indicação de dominação, já que o estilo dela era difundido aos locais conquistados, o estado mochica estabelecia governos locais e fortificações nos lugares conquistados, portanto a troca cultural é só um aspecto da submissão dessas populações. Na capital mochica existiam grandes estruturas piramidais escalonadas chamadas Huaca del Sol e Huaca de la Luna, degraus diferentes tinham marcas de fabricantes diferentes, o que é um indicio de que populações dominadas teriam de participar dessas construções:
Los ladrillos que conformaban cada sección llevaban la marca del mismo fabricante, distinta de las otras secciones, lo que sugiere que habían sido colocadas en cada sección por equipos de trabajadores reclutados en una comunidade y operando como una unidad separada [...] puede ser que el estado mochica intituyera un sistema de trabajo obligatorio para los proyectos públicos.” (FIEDEL, 1996, p.363)
Em cada capital provincial se construía edificações parecidas com essas Huacas além de fortificações para prevenir ataques tanto de outros estados quanto das populações dominadas, felizmente o trabalho com metal dos Mochicas era bastante avançado o que provavelmente ajudava em todo tipo de conflito, além de criarem peças ornamentais e instrumentos agrícolas (FIEDEL, 1996, p.363). Nas vestimentas estavam as marcas da estratificação social e também da importância da guerra, os nobres, guerreiros e sacerdotes faziam parte da elite além das cerâmicas e oferendas funerárias mostrarem que essa era uma sociedade hierárquica.
A cultura Nazca foi contemporânea a de Moche, além de cerâmica, eles confeccionavam tecidos de ótima qualidade, no entanto as suas criações mais em evidência são as Linhas de Nazca, desenhos feitos no chão que só podem ser vistos do céu, considerando que nesse período eles não fizeram estruturas verticais piramidais como era comum, é provável que os desenhos no chão sirvam a um propósito religioso parecido, “[...] un proyecto análogo a los macizos montículos de la costa norte.” (FIEDEL, 1996, p.367).
A civilização Tiahuanaco, no entanto, dominava a arquitetura em pedra eles criaram de avenidas, templos e tumbas e esculturas de pedra em um estilo que foi bastante difundido na zona andina central. Um de seus maiores centros urbanos estava em uma área pantanosa, portanto eles dominavam uma técnica de cultivo parecida com as chinampas astecas onde plantavam em cima de diques utilizando o barro do lago como fertilizante (FIEDEL, 1996, p.368). Os Tiahuanaco estabeleciam relações econômicas com muitas populações diferentes o que garantia produtos diversos que eles não conseguiriam normalmente, ainda que as relações politicas deles sejam difíceis de interpretar, sabemos que eles tiveram uma grande influencia na cultura dos Huari e na cultura Nazca (FIEDEL, 1996, p.371).

2 PERÍODO PÓS-CLÁSSICO ANDINO
2.1 Império Huari
O período Pós-clássico andino se deu por volta do século VI. Neste momento a região andina encontrava-se política e geograficamente alterada devido às disputas em busca de expansão territorial dos estados regionais do período Clássico. Havendo assim, uma tendência a militarização e um significante prestígio de algumas elites regionais que cresciam com esta militarização e com a tributação de trabalhos coletivos.
O período Pós-clássico foi caracterizado pelos processos de unificação regionais, cuja emergência visava estabelecer impérios territoriais. Estes seguidos por períodos de instabilidade em âmbito político. O período Pós-clássico andino teve como primeiro momento o processo de unificação entre 600 e 1200 d.C, aqui encontramos o Império Huari.
Segundo evidências arqueológicas a cidade Huari estabeleceu-se nas proximidades da atual cidade de Ayacucho no Peru, sendo considerada uma colônia de Tiahuanaku. Ambos os impérios, Huari e Tiahuanaku, apresentavam algumas semelhanças, principalmente nos aspectos arquitetônicos e religiosos, chegando até mesmo a dividirem o poder do Altiplano andino em meados do período Pós-clássico.
Ainda assim, segundo Fiedel as relações entre os impérios Huari e Tiahuanaku não foram totalmente esclarecidas
Las relaciones de los estados de Huari y Tiahuanaco no están claras. [...]
Algunos arqueólogos reconecen uma ruptura em la distribución del estilo de carámica que puede marcar el límite entre los estados del norte y del sur; por otro lado, el plan regular de los complejos recuerda más la arquitectura de Tiahuanaco que las edificaciones adaptadas a um perfil Huari. Además, las recientes excavaciones en Huari han revelado vestigios de recubrimiento em la arquictetura de piedra como existía en Tiahuanaco debajo de las paredes hechas com barro y piedra. Esto sugiere la posibilidad de que Huari comenzara como uma colônia de Tiahuanaco. (FIEFEL, 1996, p.371).

Antes de constituir-se como império, a cidade de Huari foi fundada em 600 d.C, com uma população de 10 a 30 mil habitantes em uma área não muito maior a 4 km². Tinha uma economia baseada na agricultura - que contava com um desenvolvido sistema agrícola com canais e obras hidráulicas, na criação de alguns animais como as lhamas, no cultivo de matérias-primas e na exportação de instrumentos metalúrgicos feitos de bronze.
Com uma população em constante crescimento, por volta de 800 d.C houve a necessidade de expansão do poder político de Huari, por meio de conquistas militares com o objetivo de conquistar povos e territórios. Compartilhando o poder do altiplano com o império Tiahuanaku, Huari lançou seu processo de expansão em sentido ao litoral conquistando Nazca na área litorânea do sul do Peru, Moche na área litorânea norte e, por último, a área litorânea central com Pachacamac e Cajamarca. Este processo de expansão em direção ao litoral peruano levou quatro séculos. A importância desta ampliação territorial também acarretava no aumento de contribuintes da rede tributária.
As regiões que passaram a ser pertencentes ao Império Huari sofreram uma forte transição cultural, tendo as tradições locais ainda do Período Clássico substituídas pelo padrão cultural Huari-Tiahuanaku. As cerâmicas passaram a apresentar o estilo Altiplano, de modelo policroma, representando o Deus dos Báculos de forma iconográfica.
O verdadeiro caráter da expansão Huari está na reorganização dos centros urbanos (LUMBRERAS, 1980). Assim como a cultura, o plano urbano assumiu o padrão arquitetônico Huari-Tiahuanaku. Portanto, esta reorganização não apareceu somente em caráter físico e arquitetônico – apesar da criação de canais de irrigação e construção de estradas - mas principalmente em âmbito de reorganização política. Ou seja, as cidades foram fortificadas, recebendo além de função religiosa e cerimonial, funções administrativas e produtivas com presença de edificações estatais, como também o controle do Estado sobre a produção artesanal e na circulação de bens, havendo uma espécie de burocratização voltada para arrecadação tributária.
O Império Huari-Tiahuanaku entra em declínio por volta de 1.200 d.C, segundo Lumbreras (1980), devido a contradições internas e a forte rearticulação do poder entre as elites locais que rebelaram-se, ao mesmo tempo em que houve uma significativa concentração nos centros urbanos, havendo o abandono da agricultura. A queda do Império Huari no século XI permitiu o retorno dos Reinos Regionais, destacando-se os reinos de Chimu, Chancay, Chanca e Cuzco. Onde cada um desenvolveu-se de acordo com suas possibilidades econômicas.



2.2 Império Chimu
Por volta de 1000 d.C os símbolos culturais, principalmente religiosos, da cultura Huari-Tiahuanaku começaram a desaparecer cedendo espaço para a reaparição das antigas tradições regionais, marcando o fim do período do Horizonte Medio e o início do período Intermedio Tardío. É neste cenário que encontramos o Reino Chimu.
O Reino Chimu surgiu por volta de 800 d.C, tendo conquistado outros povos que resultou na abrangência de uma área extensa que hoje corresponderia ao norte peruano. A capital Chimu, a cidade de Chan Chan, contava com nove enormes palácios e um de estrutura menor, todos rodeados por uma muralha de adobe. Estes palácios tinham a função de abrigar o soberano em vida e, posteriormente, depois da morte, onde o corpo do soberano era enterrado na plataforma do palácio e os seus descendentes tinham o dever de manter o local como sagrado.
Chan Chan era o coração do reino de Chimu, além de comportar os palácios reais, abrigava em sua área urbana de 25 km² complexos residenciais dos quais abrigavam a nobreza militar. O perímetro urbano na capital de Chimu também era composto por cerca de 20 mil habitantes, distribuídos entre artesãos e trabalhadores.
Na economia de Chan Chan destacava-se a confecção de tecidos e instrumentos metalúrgicos. Este último seguia o padrão do período Clássico e tinha sua produção dedicada principalmente a utensílios fúnebres, segundo escavações arqueológicas.
Além da metalúrgica, a cerâmica Chimu também apresentava padrão tradicional do período Clássico, sobre forte influência da cultura Moche Clássica. Feita em moldes, a cerâmica Chimu apresentava decoração monocromática e em alto relevo em tons variantes entre cinza e preto.
Antes do seu declínio, os chimus deram início a investimentos em grandes obras de irrigação
El proyecto más grande iniciado por los chimús fue la construcción de um canal que podia traer agua a los campos del Valle Moche desde el río Chicama, aproximadamente a 30 km al norte; no obstante, este canal inter-valle nunca fue terminado. (FIEDEL, 1996, p. 373).

O sistema de canais ficou incompleto, sendo reduzido gradualmente depois de 1.000 d.C, segundo Fiedel. Entretanto, o Reino Chimu continuou estendendo seu território, com seu auge em 1.400 d.c com duração de 50 anos. Tendo seu declínio quando se estendeu 500 km em direção a costa, confrontando-se com a conquista Inca, em 1465.

2.3 Império Inca
O império Inca, com sua capital em Cuzco, assim como outras sociedades do mesmo período, suscita dúvidas até os dias de hoje. Há diversas discussões para caracterizar o império em questão, alguns pesquisadores a chamam de "semi-feudal", outros de escravista, etc. Porém, os Incas assim como os Astecas, tiveram um regime de tributos muito forte em sua organização econômica e social. Os tributos regiam praticamente qualquer relação de trabalho, pagamentos de dívidas e trocas de mercadorias.
O tributo pode explicar muitas das relações dessas sociedades, e uma delas é a forte divisão em classes ou ordens da sociedade e, consequentemente, a exploração de umas pelas outras. Favre, em A Expansão Inca, vai definir que a sociedade vivia em uma "multiplicidade de pequenas comunidades agropastoris". O ayllu era o nome que se dava ao conjunto de famílias que habitavam uma aldeia, essas pessoas se dividiam por laços de parentesco ou alianças.
Dentro dessas famílias pode-se observar a divisão do trabalho, sendo elas responsáveis pela produção e consumo: O homem ficava com as tarefas da lavoura e do artesanato, por exemplo, e à mulher era destinado o trabalho doméstico. É interessante observarmos que, segundo algumas fontes da sociedade Inca, era ao homem que era concedido o trabalho da cerâmica, enquanto que em outros povos, como o povo Tupi-Guarani, que habitavam o território que hoje corresponde ao Rio Grande do Sul, à beira do rio Uruguai, eram as mulheres que faziam todo o trabalho da cerâmica.
Mesmo que houvessem alguns casos de casamento poligâmico, a monogamia era considerada a regra dos casamentos no império Inca. Pode-se crer que o casamento poligâmico era em maior grau efetuado por setores mais ricos da sociedade, fator muito explicado pela "renda" do indivíduo.
O campesinato andino também foi uma classe de grande importância para o modo de produção inca, mesmo com as condições precárias do solo andino, conseguiam resultados impressionantes em suas terras:
"Calculava-se em mais de 40 o número de espécies vegetais que, por via da seleção e da especialização cada vez mais avançada, ele chegou a tornar produtivas. Cada uma dessas espécies corresponde a um sítio ecológico determinado. Batata, kinoa, milho, vagem, pimenta, batata-doce, abóbora, cabaça, mandioca, amendoim, abacate, algoão - para mencionar apenas as principais - distrbuíam-se desde as terras frias de elevada altitude até os vales baixos e cálidos das planícies." (FAVRE, 1995, p. 34)
O kuraka era o chefe que controlava os ayllu, esses últimos deviam serviços para o primeiro. Essa relação se dava pela exigência da mão-de-obra, ou seja, as famílias prestavam serviços a esse chefe porém, não pagavam tributos. Entretanto, se formos pensar, essa exploração do trabalho também pode ser considerado um "tributo" ao soberano.
O imperador inca estava diretamente ligado ao Deus Sol, portanto, seria uma representação na terra das vontades dessa divindade e por isso era amplamente respeitado e temido. Foi através do trabalho da corvéia que os trabalhadores eram submetidos que surgiram grandes construções incas que conhecemos hoje. Além das funções administrativas e as das guerras, os incas construíram grandes obras como pontes, estradas e vilas habitacionais (para as classes abastadas), etc.
A propriedade da terra para os Incas não consistia em um direito. Era normalmente dividida pelo Estado em partes para o Deus Sol, partes para o soberano e seus seguidores e outras para a população em geral, essa última divisão em menor escala e mediante serviços para o imperador. Podemos falar também em propriedade privada, sendo essa dividida, normalmente, entre os chefes locais.
Wachtel irá abordar uma divisão tripartidária do império Inca, sendo Colanna, Payen e Cayao os três grupos, em contexto hierárquico.
"Estas categorías entran en la organización del sistema de parentesco... Pero estas categorías implican también una definición social: Collana designa al grupo de los jefes, es decir, de los conquistadores incas; Cayao unifica a la población vencida, no inca; por último, Payan representa un grupo mixto, constituido por los ayudantes o servidores de los jefes, a la vez inca y no inca." (WACHTEL, 1976, p. 117)
Podemos notar então, sobre a divisão da sociedade inca, uma ampla perspectiva hierárquica, com graus baixos e elevados e, em nossa linguagem atual, uma meritocracia por parte das definições de poder e direitos.
A sociedade inca foi uma das mais desenvolvidas do período Pós-clássico Andino, sua arte e sua organização social e econômica podem ter servido de base para outras sociedades. Assim como outros impérios, como o Asteca, quando foram invadidos pelos espanhóis, possuíam amplos poderes e uma organização estatal fortemente desenvolvida. Foi no período da conquista onde esses impérios conheceram seu máximo esplendor, esplendor esse que foi completamente destruído por esses invasores.

Fotos: Julio Kling
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS:
FAVRE, H. A Civilização Inca. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1995.
FIEDEL, S. Prehistoria de America. Barcelona: Crítica, 1996.
LUMBRERAS, L. El Peru prehispanico. In: Nueva Historia Geral del Peru. Lima: Mosca Azul, 1980.
WACHTEL, N. Los Vencidos: Los Índios del Peru Frente a Conquista Española (1530-1570). Madri: Ed. Alianza, 1976.

Fotos: Museu de Antropologia de Lima - Peru