Este espaço é uma homenagem ao grande sociólogo e historiador Gilberto Freire criador da obra homônima. Seu objetivo é a divulgação de latinidades, africanismos e gentilidades e o desvelamento desse povo apaixonante e apaixonado denominado latino americano e suas origens.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

I - Capoeira Sagrada - Escravidão e Resistência




Analisar os aspectos da Capoeira através do viés esotérico da religiosidade e espiritualidade, no processo de formação da cultura Afro-brasileira, em relação à estruturação das crenças e práticas mágicas milenares do velho continente, sem esquecer a história da cruel escravidão e a resistência do povo negro seria o mesmo que menosprezar as causas que levaram ao enriquecimento dos modos e falas do povo brasileiro e suas manifestações culturais na atualidade, herança tecida a ferro e fogo.

Quando iniciamos esta análise, que deu origem ao ensaio, incentivados na época pelo mestre Batista, um dos principais capitães da Capoeira Angola de Porto Alegre, pesquisamos várias fontes e encontramos na história do Brasil um imenso caudal a ser explorado, tema que normalmente é negligenciado pela visão formal dos academicistas e pelos mestres nas escolas secundárias que impõem uma censura histórica e ideológica sobre a questão. Com esta orientação, e certo de um grande desafio, busquei nas bibliografias dos historiadores e antropólogos no sentido de empreender um tortuoso caminho, com o merecido respeito que o assunto suscita.

Não posso negar ter vislumbrado um universo novo, misterioso e desconhecido da maioria, muitas vezes perturbador por suas origens nos injustos grilhões da escravidão do homem africano, mas imensamente rico em profundidade e evolução que compreende a Capoeira Sagrada e suas muitas manifestações.

Para ampliar a visão do leitor como estudo comparado buscamos traçar uma analogia com as crenças orientais taoistas e budistas, o sufismo árabe e outras formações esotéricas milenares. Diferente do Ocidente onde existe uma clara distinção entre o sagrado e o profano, na Ásia e na África sagrado e profano fazem parte de uma unidade indissolúvel e compreendem o cotidiano das pessoas, suas manifestações culturais, seus cultos e folguedos sem uma fronteira definida.

Dividi este ensaio em duas partes que podem ser lidas de forma independente. Esta primeira trata do regime de escravidão e como o cativo era tratado pelos seus captores e das instituições que deram cobertura e substância jurídica a tal ignominia.  



O cativeiro, a religiosidade e a resistência são os três elementos básicos formadores da personalidade da Capoeira enquanto manifestação única, que possui raízes no continente africano, mas no Brasil adquiriu uma feição própria a partir da condição que o negro encontrou no continente sul americano. Dentro deste padrão particular, desta raiz que foi semeada na sua origem desde que os primeiros negros africanos chegaram no lugar que seria denominado Brasil na condição de escravos cativos. Eles aportaram de uma longa jornada vindos em naves superlotadas, famintos, doentes, vencidos, em absoluta carência psicológica pelo sequestro de seu meio e abandono das suas comunidades de origem. Estes contingentes humanos que tinham sido roubados de tudo puderam estabelecer uma ponte através de rituais velados em seus folguedos e festas conseguiram fortalecer a própria religiosidade em terras estrangeiras, miscigenando sua cultura com a do gentio, e realizando sua resistência, nem sempre pacifica, de luta contra o abjeto sistema de escravidão implantado pelo branco europeu na Colônia.

Darcy Ribeiro em sua obra "O Povo Brasileiro" tenta explicar este processo:

"...por estarem rigidamente prescritos pela estrutura da colônia como sociedade estratificada, a que se incorporava a condição de escravo - sobreviveria principalmente no plano ideológico, porque ele era mais recôndito e próprio. Quer dizer, nas crenças religiosas e nas práticas mágicas, a que o negro se apegava no esforço ingente por consolar-se por seu destino e para controlar as ameaças do mundo azaroso em que submergia. Junto com estes valores espirituais, os negros retêm, no mais recôndito de si, tanto reminiscências rítmicas e musicais, como saberes e gostos culinários." 

Escravidão -  Moinhos de Gastar Gente


O processo escravista moldou toda a nova manifestação cultural de um povo mantido submisso pela força do regime senhorial colonialista vigente. Mais de um século distantes de um regime que perdurou por pelo menos trezentos anos, ainda sentindo suas consequências na estratificação social decorrente deste processo, que ainda ocorrem tanto no Brasil, quanto no continente africano, deste verdadeiro genocídio, tragédia que não encontra paralelo em nenhum outro fato da história humana, podemos através dos historiadores ter uma visão parcial da crueza e selvageria dos tempos da servidão africana.


Explica Darcy Ribeiro:

"Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro - mercador africano de escravos - para a praia, onde era resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali partia em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o porto e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros, para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo a travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava terra à dentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano. No Domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca porção de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar no dia seguinte até a exaustão." 

http://sobradosemocambos.blogspot.com.br/2011/03/motim-bordo-o-trafico-de-escravos.html          

Discorrendo ainda sobre a falta de liberdade, e sobre as dificuldades que o africano encontrava quando cativo em meio aos distantes sertões, numa terra absolutamente desconhecida e agreste, Darcy Ribeiro relata:

"Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação com ninguém - seu capataz poderia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos - , maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava a atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilação dos dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites do pelourinho, sob trezentas chibatadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado a ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso."  

Em outra obra documental escrita em 1793 de autoria do Doutor Luiz Antonio de Oliveira para a Real Academia de Ciências de Lisboa, preocupado unicamente com o grande desperdício de mão de obra durante o tráfico de escravos no período do auge do processo escravista deixou verdadeiro documento histórico sobre as condições existentes na época relatadas com frieza por testemunha ocular:

" - quando são permutados, sofrem sinal privativo do sertanejo ( o pombeiro que os marcava a ferro pela primeira vez )..., que os levam na escravidão, para serem conhecidos, e achados, no caso de fuga. Ainda de mais lhes acresce, que chegando ao porto maritimo, onde hão-de ser embarcados, aí tornam a ser marcados no peito direito com as armas do rei, e da nação, de quem ficam sendo vassalos, e vão viver sujeitos na escravidão; cujo sinal a fogo lhes é posto com um instrumento de prata no ato de pagar os direitos: a esta marca lhe chamam carimbo" 

"Sofrem de mais outra marca, ou carimbo, que a fogo também lhes manda por o privativo senhor deles, debaixo de cujo nome, e , negociação eles são transportados para o Brasil; a qual lhes é posta, ou no peito esquerdo, ou no braço, para também serem conhecidos em caso de fuga: sem que nestes lances a natureza ceda a atais martírios."







Capturados ao acaso entre centenas de povos e comunidades tribais na África, vindos principalmente, mas não tão só, da costa ocidental do continente, falavam dialetos e linguás diferentes entre sí, o que prejudicava sua identidade e união como etnia homogenia, pelas diferenças culturais e politicas existentes então. Questões particulares, como a religião, servia também de fator de desunião que favorecia os captores que promoviam de forma proposital a divisão das populações de diferentes etnias e impediam assim a formação de núcleos solidários tanto no embarque quanto nas propriedades onde o trabalho escravo era explorado. Só após o transcorrer de algumas gerações a religião e outras manifestações culturais passaram a ser a expressão da consciência negra brasileira.

Como ocorreu com outros imigrantes, vindos a integrar-se na civilização brasileira, os negros, encontrando constituída aquela estruturas luso-tupi tiveram que conviver e aprender a viver, plantando e cozinhando os frutos da terra, chamando as coisas  e os espíritos pelos nomes tupis sincretizados na Língua Geral do Brasil, fumando o tabaco da terra e bebendo o cauim do gentio.

Deste caldeirão de culturas africanas, como dança-luta foi que surgiu a Capoeira, como manifestação cultural nitidamente brasileira, como herança da resistência do oprimido contra o opressor. Esta herança meio cultural, meio racial, associada às crenças indígenas, proveria entretanto à cultura brasileira, em seu plano ideológico, de uma singular fisionomia cultural. Neste esfera, como quer Darcy Ribeiro, é que se destaca, um catolicismo popular muito mais discrepante que qualquer das heresias cristãos tão perseguidas em Portugal.

Luta - A Resistência

"Os escravos metidos nesta tortura, sustentando o horrível combate da vida com a morte, tremendo, e sendo obrigados a miúdo a comparecerem como réus: alguns tomam o fôlego, e morrem; outros passam navalhas às goelas; outros lançam-se aos poços; outros precipitam-se das janelas, das grandes alturas; outros finalmente matam seus senhores." (Memórias a Respeito dos Escravos e Tráfico da Escravatura entre a Costa D'Africa e Brasil - Dr. Luiz Antônio de Oliveira Mendes - 1793)

Uma vez na condição de escravo, só se sai através da morte ou da fuga. Caminho estreito onde muitos negros e índios saíram; pela fuga de uma vida estafante conseguida através do suicídio, que era frequente, ou da fuga pura e simples, na maioria das vezes mortal para o fugitivo. Todo negro alentava no peito uma ilusão de fuga, e sua audácia alimentada pela necessidade de liberdade obrigava o "senhor" a vigiá-lo durante seus sete ou dez anos, expectativa de vida na labuta servil. Seu destino era morrer de estafa, estropiado, que era sua morte natural na época.

A vitima, mesmo sem ter plena consciência das razões do seu ato, subjacente as mesmas encontrava-se a sua condição de cativo como causa indireta de sua ação extrema de tirar a própria vida. Um cativo podia suicidar-se por temer ser vendido, ser separado dos amigos ou ser castigado. Não raro, um cativo matava-se após atentar contra "o senhor" ou algum preposto deste. Escravos suicidavam-se devido a negativa senhorial de alforriá-lo sob pagamento. Em geral, o cativo buscava no suicídio - ainda que inconscientemente - a libertação de uma vida em todos os sentidos ingrata. Com tal ato, o "senhor" perdia o valor representado pelo negro. Mesmo um suicídio fracassado prejudicava o seu "dono". Era baixo o valor de venda de um cativo que atentara contra a sua vida. A eventualidade do suicídio, podia servir como processo em cadeia na população cativa na perspectiva a uma crescente degradação das condições de vida e labuta sem fim. Num ambiente de grande tensão, um suicida podia incentivar com seu exemplo outros cativos igualmente desesperados pela opressão. Crenças e religiosidade também podiam influenciar tais atos, que ocorriam não apenas nos campos ou minas, onde as condições eram ainda piores, mas também nos centros urbanos.

Muitas vezes o suicídio do cativo era anunciado como acidente ou doença, encoberto pelos donos do sistema servil, que não queriam passar por maus amos. Outras vezes o assassinato do cativo era apresentado como suicídio pelo sistema senhorial, eximindo o responsável pelo crime da responsabilidade pelo assassinato cruel. 

O banzo, moléstia psicológica que acometia não só o africano escravizado, mas também o índio cativo era outra fonte comum de morte no cativeiro. O stress pós-traumático natural de uma vida de injurias permanentes, verdadeira doença do espírito, levava o doente ao abandono completo das faculdades em relação ao mundo externo, a recusar alimento até enfraquecer de todo e vir a falecer. As razões desta depressão profunda, conforme relatos da época, estão a saudade dos seus, de sua pátria, o amor perdido de alguém, a ingratidão e aleivosia que outro lhe fizera, a profunda constatação da perda de liberdade, a percepção dos maus tratos continuados. Conforme diagnosticou o Dr. Luiz Antonio de Oliveira Pereira sobre suas Memórias já citada anteriormente: "É uma paixão da alma, a que se entregam, que só é extinta com a morte." 

Os fugitivos do cativeiro, quando alcançavam a liberdade, no meio dos sertões, formavam quilombos, onde tentavam recriar os antigos costumes do continente africano, já integrados ao novo meio ambiente brasileiro. Dos muitos quilombos que existiram alguns foram destruídos pelos capitães do mato que recebiam vultuosas somas pelo apressamento dos homens e mulheres novamente cativos. Muitos eram vendidos no Brasil, outros eram enviados para trabalhar no Caribe para padecer e morrer nas grandes plantações, como aconteceu em Palmares.

Em todo o país, quando ocorreram revoluções, de norte a sul, o africano participou ativamente em busca de sua liberdade demonstrando seu valor em combate. Farrapos, Sabinada, Cabanagem, em todas as revoltas populares o negro atuou sempre na esperança da libertação do cativeiro indigno. Quando os movimentos eram sufocados enquanto os brancos eram degredados ou sofriam penas de restrição de liberdade por tempo determinado, os negros revoltosos eram exterminados em chacinas sangrentas ou mortos pelo açoite.


No sul do Brasil, entre outras regiões, foi grande a atuação dos contingentes de negros. Libertos do cativeiro pela fuga demonstraram real bravura lutando no Uruguai ao lado de Artigas, o herói da independência daquele país. Literalmente lutaram pela própria liberdade, pois em sua maioria tinham fugido da opressão das estâncias e cidades do Brasil meridional atravessando a fronteira para conseguir liberdade em terras castelhanas. Pelo seu grande valor em combate eram consideradas as tropas de elite do libertador. 

Na Guerra dos Farrapos, que durou dez anos, foram os cativos por escolha ou não, incorporados nas tropas, quase sempre como infantaria, pelos caudilhos revoltosos, já que o gaúcho livre só combatia montado, considerando perigoso e inferior combater a pé. Os Lanceiros Negros, que impuseram seu valor na revolta, conseguiram elevar sua condição para cavalarianos na promessa recebida de liberdade ao fim do conflito. Quando caíam prisioneiros, nas mãos dos imperiais, não gozavam dos mesmos direitos dos brancos rendidos. Poderiam sofrer a degola, o supliciamento, a tortura ou retornar à condição de cativo. Com tais crueldades pretendiam desestimular o espírito de luta e evitar que os demais cativos de se sublevarem, o que era comum em muitas localidades.

Ao fim da revolução farroupilha, conforme contam os estudiosos, na última batalha entre imperiais e revoltosos, segundo alguns arranjada, David Canabarro, o general revoltoso, antes manda desmuniciar os soldados negros e assim facilitar sua chacina pelos imperiais. Após este combate foi declarada a trégua, preservando os direitos dos latifundiários escravistas, pois não havia interesse de ambos os lados de libertar negros insurretos treinados nas lides da guerra numa província controlada por escravocratas.

Antes diso, o general Netto, politicamente isolado leva seus soldados negros para o Uruguai onde formaram uma comunidade livre que sobrevive até hoje através de seus descendentes e costumes próprios. 

O cativeiro nunca foi aceito pelo negro no país. Sempre que possível ele tentou a liberdade de todas as formas possíveis através de revoltas e sublevações no interior e nas cidades. Como já foi dito antes com sabedoria: "Não existiram escravos, existiram pessoas que foram tornadas cativas contra a própria vontade."

http://sobradosemocambos.blogspot.com.br/2011/02/as-revoltas-dos-males-na-bahia-do-sec.html

http://sobradosemocambos.blogspot.com.br/2011/03/a-grande-insurreicao-de-1835-bahia.html


A nefasta herança da escravidão ainda se faz sentir em todo o continente americano. O descendente de cativos, ainda hoje, cumpre um papel servil dentro da sociedade capitalista, o novo viés da cultura escravocrata, onde continua a ser tratado como cidadão de condição inferior se não for alguma celebridade do show business ou esportista. Nas comunidades onde habitam suas atividades e tradições são sempre criminalizadas e a opressão é mortal com altos índices de assassinato de negros promovido pelas forças policiais em comparação às demais etnias.       


                          

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

SOCIEDADES AGRÍCOLAS URBANAS DO PERÍODO CLÁSSICO ANDINO E ESTADOS FORMALIZADOS DO PERÍODO PÓS-CLÁSSICO ANDINO.

Autora: Flora Selma Trein Kling

1 PERÍODO CLÁSSICO ANDINO
O período clássico andino é caracterizado pela existência de sociedades agrícolas urbanas, que são grandes construtores e possuem um sistema religioso bem definido. Essas sociedades são expansionistas, portanto a guerra e a dominação cultural estão muito presentes no registro arqueológico. Está presente também o surgimento de técnicas especializadas na produção de cerâmica, tecidos e na fundição de minerais como o cobre, de acordo com Fiedel:
"Las ciudades y los estados se desarrollaron; fueron construidos sistemas de irrigación a gran escala em los valles de la costa; las poblaciones alcanzaron su máximo tamaño en muchas áreas; y los artesanos llegaron a ser excelentes ceramistas, tejedores e metalúrgicos. La aparición de los estados también tiene su lado negativo: la guerra se hizo más común y se construyeron fortificaciones y ciudades amuralladas” (FIEDEL, 1996, p.361)
Nessa época existe um grande aumento populacional, que se relaciona com a domesticação e o refinamento de técnicas de cultivo de plantas “[...] el desarrollo demográfico está em intima relación com las mayores possibilidades de vida que se dan em este tempo.” (LUMBRERAS, 1980, p.97). Embora a base da alimentação fossem os tubérculos e o milho, na costa são encontrados restos de animais que mostram que a pesca ainda era uma atividade importante assim como a caça na serra ainda que “[...] debido a los interesses agrícolas, la poblácion serrana tiende a trasladarse a lugares cercanos a los vales susceptibles de oferecer terrenos de cultivo.” (LUMBRERAS, 1980, p.95) além de indícios de domesticação de cachorros e lhamas (LUMBRERAS, 1980, p.97).
Na cultura Chavín se inicia a construção de grandes centros cerimoniais na zona andina central (LUMBRERAS, 1980, p.98) assim como aparecem figuras mitológicas usadas mais tarde pelos Tiahuanaco, como o chamado deus dos báculos e figuras felinas antropomorfizadas. As sociedades desse período são bastante estratificadas, e sacerdotes aparecem em cerâmicas e tapeçarias como figuras centrais sociais, politica e economicamente, o autor Lumbreras explica a importância do sacerdócio além do culto:
"Debe suponerse que al lado del oficio cultista, las funciones sacerdotales pudieron alcanzar incluso el control de certo tipo de trabajos tales como los relacionados com la hidráulica, el cultivo, etc.” (LUMBRERAS, 1980, p.110)
No entanto a influencia Chavín estava muito restrita por volta de 200 A.C o que possibilitou o surgimento de culturas diversas. A civilização Mochica é conhecida pelas cerâmicas que mostram atividades do cotidiano e são importantes para compreender como essas pessoas viviam e que tipos de deuses cultuavam, a temática das pinturas é bem variada:
[...] representaciones realistas de dioses, ceremonias, atividades manufactureras, caza, pesca, agricultura, edificaciones, guerra, rituales de la corte, crimines y castigos, recaudación de tributos, efermedades y actividad sexual.” (FIEDEL, 1996, p.361)
As cerâmicas também são uma boa indicação de dominação, já que o estilo dela era difundido aos locais conquistados, o estado mochica estabelecia governos locais e fortificações nos lugares conquistados, portanto a troca cultural é só um aspecto da submissão dessas populações. Na capital mochica existiam grandes estruturas piramidais escalonadas chamadas Huaca del Sol e Huaca de la Luna, degraus diferentes tinham marcas de fabricantes diferentes, o que é um indicio de que populações dominadas teriam de participar dessas construções:
Los ladrillos que conformaban cada sección llevaban la marca del mismo fabricante, distinta de las otras secciones, lo que sugiere que habían sido colocadas en cada sección por equipos de trabajadores reclutados en una comunidade y operando como una unidad separada [...] puede ser que el estado mochica intituyera un sistema de trabajo obligatorio para los proyectos públicos.” (FIEDEL, 1996, p.363)
Em cada capital provincial se construía edificações parecidas com essas Huacas além de fortificações para prevenir ataques tanto de outros estados quanto das populações dominadas, felizmente o trabalho com metal dos Mochicas era bastante avançado o que provavelmente ajudava em todo tipo de conflito, além de criarem peças ornamentais e instrumentos agrícolas (FIEDEL, 1996, p.363). Nas vestimentas estavam as marcas da estratificação social e também da importância da guerra, os nobres, guerreiros e sacerdotes faziam parte da elite além das cerâmicas e oferendas funerárias mostrarem que essa era uma sociedade hierárquica.
A cultura Nazca foi contemporânea a de Moche, além de cerâmica, eles confeccionavam tecidos de ótima qualidade, no entanto as suas criações mais em evidência são as Linhas de Nazca, desenhos feitos no chão que só podem ser vistos do céu, considerando que nesse período eles não fizeram estruturas verticais piramidais como era comum, é provável que os desenhos no chão sirvam a um propósito religioso parecido, “[...] un proyecto análogo a los macizos montículos de la costa norte.” (FIEDEL, 1996, p.367).
A civilização Tiahuanaco, no entanto, dominava a arquitetura em pedra eles criaram de avenidas, templos e tumbas e esculturas de pedra em um estilo que foi bastante difundido na zona andina central. Um de seus maiores centros urbanos estava em uma área pantanosa, portanto eles dominavam uma técnica de cultivo parecida com as chinampas astecas onde plantavam em cima de diques utilizando o barro do lago como fertilizante (FIEDEL, 1996, p.368). Os Tiahuanaco estabeleciam relações econômicas com muitas populações diferentes o que garantia produtos diversos que eles não conseguiriam normalmente, ainda que as relações politicas deles sejam difíceis de interpretar, sabemos que eles tiveram uma grande influencia na cultura dos Huari e na cultura Nazca (FIEDEL, 1996, p.371).

2 PERÍODO PÓS-CLÁSSICO ANDINO
2.1 Império Huari
O período Pós-clássico andino se deu por volta do século VI. Neste momento a região andina encontrava-se política e geograficamente alterada devido às disputas em busca de expansão territorial dos estados regionais do período Clássico. Havendo assim, uma tendência a militarização e um significante prestígio de algumas elites regionais que cresciam com esta militarização e com a tributação de trabalhos coletivos.
O período Pós-clássico foi caracterizado pelos processos de unificação regionais, cuja emergência visava estabelecer impérios territoriais. Estes seguidos por períodos de instabilidade em âmbito político. O período Pós-clássico andino teve como primeiro momento o processo de unificação entre 600 e 1200 d.C, aqui encontramos o Império Huari.
Segundo evidências arqueológicas a cidade Huari estabeleceu-se nas proximidades da atual cidade de Ayacucho no Peru, sendo considerada uma colônia de Tiahuanaku. Ambos os impérios, Huari e Tiahuanaku, apresentavam algumas semelhanças, principalmente nos aspectos arquitetônicos e religiosos, chegando até mesmo a dividirem o poder do Altiplano andino em meados do período Pós-clássico.
Ainda assim, segundo Fiedel as relações entre os impérios Huari e Tiahuanaku não foram totalmente esclarecidas
Las relaciones de los estados de Huari y Tiahuanaco no están claras. [...]
Algunos arqueólogos reconecen uma ruptura em la distribución del estilo de carámica que puede marcar el límite entre los estados del norte y del sur; por otro lado, el plan regular de los complejos recuerda más la arquitectura de Tiahuanaco que las edificaciones adaptadas a um perfil Huari. Además, las recientes excavaciones en Huari han revelado vestigios de recubrimiento em la arquictetura de piedra como existía en Tiahuanaco debajo de las paredes hechas com barro y piedra. Esto sugiere la posibilidad de que Huari comenzara como uma colônia de Tiahuanaco. (FIEFEL, 1996, p.371).

Antes de constituir-se como império, a cidade de Huari foi fundada em 600 d.C, com uma população de 10 a 30 mil habitantes em uma área não muito maior a 4 km². Tinha uma economia baseada na agricultura - que contava com um desenvolvido sistema agrícola com canais e obras hidráulicas, na criação de alguns animais como as lhamas, no cultivo de matérias-primas e na exportação de instrumentos metalúrgicos feitos de bronze.
Com uma população em constante crescimento, por volta de 800 d.C houve a necessidade de expansão do poder político de Huari, por meio de conquistas militares com o objetivo de conquistar povos e territórios. Compartilhando o poder do altiplano com o império Tiahuanaku, Huari lançou seu processo de expansão em sentido ao litoral conquistando Nazca na área litorânea do sul do Peru, Moche na área litorânea norte e, por último, a área litorânea central com Pachacamac e Cajamarca. Este processo de expansão em direção ao litoral peruano levou quatro séculos. A importância desta ampliação territorial também acarretava no aumento de contribuintes da rede tributária.
As regiões que passaram a ser pertencentes ao Império Huari sofreram uma forte transição cultural, tendo as tradições locais ainda do Período Clássico substituídas pelo padrão cultural Huari-Tiahuanaku. As cerâmicas passaram a apresentar o estilo Altiplano, de modelo policroma, representando o Deus dos Báculos de forma iconográfica.
O verdadeiro caráter da expansão Huari está na reorganização dos centros urbanos (LUMBRERAS, 1980). Assim como a cultura, o plano urbano assumiu o padrão arquitetônico Huari-Tiahuanaku. Portanto, esta reorganização não apareceu somente em caráter físico e arquitetônico – apesar da criação de canais de irrigação e construção de estradas - mas principalmente em âmbito de reorganização política. Ou seja, as cidades foram fortificadas, recebendo além de função religiosa e cerimonial, funções administrativas e produtivas com presença de edificações estatais, como também o controle do Estado sobre a produção artesanal e na circulação de bens, havendo uma espécie de burocratização voltada para arrecadação tributária.
O Império Huari-Tiahuanaku entra em declínio por volta de 1.200 d.C, segundo Lumbreras (1980), devido a contradições internas e a forte rearticulação do poder entre as elites locais que rebelaram-se, ao mesmo tempo em que houve uma significativa concentração nos centros urbanos, havendo o abandono da agricultura. A queda do Império Huari no século XI permitiu o retorno dos Reinos Regionais, destacando-se os reinos de Chimu, Chancay, Chanca e Cuzco. Onde cada um desenvolveu-se de acordo com suas possibilidades econômicas.



2.2 Império Chimu
Por volta de 1000 d.C os símbolos culturais, principalmente religiosos, da cultura Huari-Tiahuanaku começaram a desaparecer cedendo espaço para a reaparição das antigas tradições regionais, marcando o fim do período do Horizonte Medio e o início do período Intermedio Tardío. É neste cenário que encontramos o Reino Chimu.
O Reino Chimu surgiu por volta de 800 d.C, tendo conquistado outros povos que resultou na abrangência de uma área extensa que hoje corresponderia ao norte peruano. A capital Chimu, a cidade de Chan Chan, contava com nove enormes palácios e um de estrutura menor, todos rodeados por uma muralha de adobe. Estes palácios tinham a função de abrigar o soberano em vida e, posteriormente, depois da morte, onde o corpo do soberano era enterrado na plataforma do palácio e os seus descendentes tinham o dever de manter o local como sagrado.
Chan Chan era o coração do reino de Chimu, além de comportar os palácios reais, abrigava em sua área urbana de 25 km² complexos residenciais dos quais abrigavam a nobreza militar. O perímetro urbano na capital de Chimu também era composto por cerca de 20 mil habitantes, distribuídos entre artesãos e trabalhadores.
Na economia de Chan Chan destacava-se a confecção de tecidos e instrumentos metalúrgicos. Este último seguia o padrão do período Clássico e tinha sua produção dedicada principalmente a utensílios fúnebres, segundo escavações arqueológicas.
Além da metalúrgica, a cerâmica Chimu também apresentava padrão tradicional do período Clássico, sobre forte influência da cultura Moche Clássica. Feita em moldes, a cerâmica Chimu apresentava decoração monocromática e em alto relevo em tons variantes entre cinza e preto.
Antes do seu declínio, os chimus deram início a investimentos em grandes obras de irrigação
El proyecto más grande iniciado por los chimús fue la construcción de um canal que podia traer agua a los campos del Valle Moche desde el río Chicama, aproximadamente a 30 km al norte; no obstante, este canal inter-valle nunca fue terminado. (FIEDEL, 1996, p. 373).

O sistema de canais ficou incompleto, sendo reduzido gradualmente depois de 1.000 d.C, segundo Fiedel. Entretanto, o Reino Chimu continuou estendendo seu território, com seu auge em 1.400 d.c com duração de 50 anos. Tendo seu declínio quando se estendeu 500 km em direção a costa, confrontando-se com a conquista Inca, em 1465.

2.3 Império Inca
O império Inca, com sua capital em Cuzco, assim como outras sociedades do mesmo período, suscita dúvidas até os dias de hoje. Há diversas discussões para caracterizar o império em questão, alguns pesquisadores a chamam de "semi-feudal", outros de escravista, etc. Porém, os Incas assim como os Astecas, tiveram um regime de tributos muito forte em sua organização econômica e social. Os tributos regiam praticamente qualquer relação de trabalho, pagamentos de dívidas e trocas de mercadorias.
O tributo pode explicar muitas das relações dessas sociedades, e uma delas é a forte divisão em classes ou ordens da sociedade e, consequentemente, a exploração de umas pelas outras. Favre, em A Expansão Inca, vai definir que a sociedade vivia em uma "multiplicidade de pequenas comunidades agropastoris". O ayllu era o nome que se dava ao conjunto de famílias que habitavam uma aldeia, essas pessoas se dividiam por laços de parentesco ou alianças.
Dentro dessas famílias pode-se observar a divisão do trabalho, sendo elas responsáveis pela produção e consumo: O homem ficava com as tarefas da lavoura e do artesanato, por exemplo, e à mulher era destinado o trabalho doméstico. É interessante observarmos que, segundo algumas fontes da sociedade Inca, era ao homem que era concedido o trabalho da cerâmica, enquanto que em outros povos, como o povo Tupi-Guarani, que habitavam o território que hoje corresponde ao Rio Grande do Sul, à beira do rio Uruguai, eram as mulheres que faziam todo o trabalho da cerâmica.
Mesmo que houvessem alguns casos de casamento poligâmico, a monogamia era considerada a regra dos casamentos no império Inca. Pode-se crer que o casamento poligâmico era em maior grau efetuado por setores mais ricos da sociedade, fator muito explicado pela "renda" do indivíduo.
O campesinato andino também foi uma classe de grande importância para o modo de produção inca, mesmo com as condições precárias do solo andino, conseguiam resultados impressionantes em suas terras:
"Calculava-se em mais de 40 o número de espécies vegetais que, por via da seleção e da especialização cada vez mais avançada, ele chegou a tornar produtivas. Cada uma dessas espécies corresponde a um sítio ecológico determinado. Batata, kinoa, milho, vagem, pimenta, batata-doce, abóbora, cabaça, mandioca, amendoim, abacate, algoão - para mencionar apenas as principais - distrbuíam-se desde as terras frias de elevada altitude até os vales baixos e cálidos das planícies." (FAVRE, 1995, p. 34)
O kuraka era o chefe que controlava os ayllu, esses últimos deviam serviços para o primeiro. Essa relação se dava pela exigência da mão-de-obra, ou seja, as famílias prestavam serviços a esse chefe porém, não pagavam tributos. Entretanto, se formos pensar, essa exploração do trabalho também pode ser considerado um "tributo" ao soberano.
O imperador inca estava diretamente ligado ao Deus Sol, portanto, seria uma representação na terra das vontades dessa divindade e por isso era amplamente respeitado e temido. Foi através do trabalho da corvéia que os trabalhadores eram submetidos que surgiram grandes construções incas que conhecemos hoje. Além das funções administrativas e as das guerras, os incas construíram grandes obras como pontes, estradas e vilas habitacionais (para as classes abastadas), etc.
A propriedade da terra para os Incas não consistia em um direito. Era normalmente dividida pelo Estado em partes para o Deus Sol, partes para o soberano e seus seguidores e outras para a população em geral, essa última divisão em menor escala e mediante serviços para o imperador. Podemos falar também em propriedade privada, sendo essa dividida, normalmente, entre os chefes locais.
Wachtel irá abordar uma divisão tripartidária do império Inca, sendo Colanna, Payen e Cayao os três grupos, em contexto hierárquico.
"Estas categorías entran en la organización del sistema de parentesco... Pero estas categorías implican también una definición social: Collana designa al grupo de los jefes, es decir, de los conquistadores incas; Cayao unifica a la población vencida, no inca; por último, Payan representa un grupo mixto, constituido por los ayudantes o servidores de los jefes, a la vez inca y no inca." (WACHTEL, 1976, p. 117)
Podemos notar então, sobre a divisão da sociedade inca, uma ampla perspectiva hierárquica, com graus baixos e elevados e, em nossa linguagem atual, uma meritocracia por parte das definições de poder e direitos.
A sociedade inca foi uma das mais desenvolvidas do período Pós-clássico Andino, sua arte e sua organização social e econômica podem ter servido de base para outras sociedades. Assim como outros impérios, como o Asteca, quando foram invadidos pelos espanhóis, possuíam amplos poderes e uma organização estatal fortemente desenvolvida. Foi no período da conquista onde esses impérios conheceram seu máximo esplendor, esplendor esse que foi completamente destruído por esses invasores.

Fotos: Julio Kling
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS:
FAVRE, H. A Civilização Inca. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1995.
FIEDEL, S. Prehistoria de America. Barcelona: Crítica, 1996.
LUMBRERAS, L. El Peru prehispanico. In: Nueva Historia Geral del Peru. Lima: Mosca Azul, 1980.
WACHTEL, N. Los Vencidos: Los Índios del Peru Frente a Conquista Española (1530-1570). Madri: Ed. Alianza, 1976.

Fotos: Museu de Antropologia de Lima - Peru

domingo, 30 de novembro de 2014

Revolução de 1924 – A Última Carga de Cavalaria Gaúcha


Coluna de Honorio Lemes - Foto de Ângelo Baddo 

Modena, 10 de setembro de 1859.

Meu prezado amigo sr. Almeida,

Quando eu penso no Rio Grande, nessa bela e cara província, quando no acolhimento com que fui recebido no gremio de suas familias, onde fui considerado filho: quando me lembro das minhas primeiras campanhas entre vossos valorosos concidadãos e os sublimes exemplos de amor pátrio e abnegação que deles recebi, eu fico verdadeiramente comovido. E esse passado de minha vida se imprime em minha memória como alguma cousa de sobrenatural, de mágico, de verdadeiramente romântico.

Eu vi corpos de tropas mais numerosos, batalhas mais disputadas; mas nunca vi, em nenhuma parte, homens mais valentes, nem cavaleiros mais brilhantes que os da bela cavalaria rio-grandense, em cujas fileiras aprendi a desprezar o perigo e combater dignamente pela causa sagrada das nações. Quantas vezes fui tentado a patentear ao mundo os feitos assombrosos que vi realisar por essa viril e destemida gente, que sustentou por mais de nove anos contra um poderoso império a mais encarniçada e gloriosa luta!

Não tenho escrito semelhante prodígio por falta de habilitações, porém a meus companheiros de armas por mais de uma vez tenho comemorado tanta bravura, nos combates, quanta generosidade na vitória, tanta hospitalidade, quanto afago aos estrangeiros, e a emoção que minha alma, então ainda jovem, sentia na presença e na magestade de vossas florestas, da formosura de vossas campinas, dos viris e cavalheirescos exercícios de vossa juventude corajosa; e, repassando pela memória as vicissitudes de minha vida entre vós, em seis anos de ativíssima guerra e da prática constante de ações magnânimas, como em delírio brando:

-Onde estão agora esses buliçosos filhos do Continente, tão magestosamente terríveis nos combates? Onde Bento Gonçalves, Neto, Canabarro, Teixeira e tantos valorosos que não lembro?

-Oh! Quantas vezes tenho desejado nestes campos italianos um só esquadrão de vossos centauros avezados a carregar uma massa de infantaria com o mesmo desembaraço como se fosse uma ponta de gado?

-Que o Rio Grande ateste com uma modesta lápide o sítio em que descansam seus ossos. E que vossas belíssimas patrícias cubram de flores esses santuários de vossas glórias, é o que ardentemente desejo.

-Eu muito me lembro, meu digno e caro amigo, da bondade generosa com que fui honrado por vós, no tempo em que tão dignamente ocupastes uma das pastas do ministério da república, e tenho verdadeira saudade, como gratidão dos benefícios recebidos de vós e de vossos companheiros e concidadãos na minha estada no Rio Grande. Por mim abraçai a todos esses amigos e mandai em toda a ocasião ao vosso verdadeiro amigo

"José Garibaldi"
(Giussepe Garibaldi)

A Guerra dos Farrapos ainda é o conflito mais lembrado pela história oficial do Rio Grande do Sul, mas pouco sabe hoje o homem comum dos embates ocorridos no alvorecer da República entre Chimangos e Maragatos e, o que representavam seus ideários políticos, quem eram seus personagens principais, e causa estranhamento ao cidadão urbano do séc. XXI a desenvoltura desses homens que se punham em armas para defender seus pontos de vista e lutar contra a opressão dos poderosos e a corrupção na politica.

As causas da Revolução de 1923-24 tem suas raízes ainda no séc. XIX logo após a declaração da República. Foram segundo os estudiosos a insatisfação com a pacificação que pôs fim a rebelião de 1893-95, realizada pelo emissário do presidente Prudente de Morais, que não conseguiu modificar a constituição de 1891 nem terminar com o despotismo republicano sobre a província que era comandada com mão de ferro por Júlio Prestes de Castilhos, presidente provincial à época. O Brasil estava formando ainda suas instituições politicas e a discussão entre sistema parlamentarista e presidencialista esquentava as conversas dos cafés e bares da capital e das cidades do interior da Província do Rio Grande do Sul. Os republicanos tinham tomado o governo provincial e através de artimanhas e fraudes eleitorais impediam a alternância do poder.

No final do séc. XIX e ao raiar do séc. XX os positivistas de Comte formaram-se nas Lojas Maçônicas da capital da província onde a elite dominante comandava entre seus pares, como uma máfia de poderosos, cujo objetivo almejado era a ditadura cientifica preconizada pelo sábio francês. Isso significava um governo forte, autoritário, com a mínima participação popular e praticamente sem poder legislativo. Com a proclamação da República surgiu entre seus próceres, entre outros, a figura de Benjamin Constant, líder da mocidade militar de então, simpatizante de Comte e de sua filosofia fundamentada na Ordem e no Progresso, que não dava valor à participação do povo e ao voto para definir a vontade popular. Seus representantes compunham o partido republicano que tinha tomado o poder e desde o fim do século XIX tinham estabelecido sua perpetuação no comando da província do Rio Grande do Sul. Avizinhava-se uma nova era, com a decadência da atividade agropastoril e o surgimento de uma crescente atividade industrial ainda incipiente, como razão natural do processo econômico em andamento. Para firmarem seu poder tanto Júlio de Castilhos como posteriormenta Borges de Medeiros, os dois principais representantes dessas oligarquias emergentes, reprimiram e estabeleceram as regras do comportamento politico vigente. Para impedir a participação politica da oposição o governo usou todos os seus recursos: a fraude eleitoral, a nomeação de compadres nas posições de mando, perseguições aos adversários e ameaças, gerando a violência contra a oposição. Os Legalistas cujos principais lideres eram Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros e a família Pinheiro Machado criaram os corpos provisórios de combatentes, como braço armado, que deram posteriormente origem à Brigada Militar (1892). 

Figurava na oposição, os federalistas, grupo politico de natureza liberal que acreditava ser o parlamentarismo a melhor forma de governo e se opunha ao “status quo” de poder dos castilhistas e de seu sucessor Borges de Medeiros. Eram no principio monarquistas e contrários ao texto constitucional rio-grandense, pois entendiam que limitavam os direitos dos coronéis, donos de estância, localizados na região de planície da campanha. Na federação, ou Estado Federal há uma entidade soberana composta por diversos estados territoriais autônomos com governo próprio. Como regra geral, os estados federais que se unem para constituir a federação possuem um conjunto de competências e prerrogativas garantidas pela constituição que não podem ser abolidas ou alteradas de modo unilateral pelo governo central. Era esse sistema que acreditavam querer implantar. Seria ingênuo acreditar que suas lideranças já no séc. XX pretendessem o retorno da monarquia, regime que havia deixado de existir por completo no Brasil. 


O termo Maragato que designava no início, em 1893, às tropas que acompanhavam Gumercindo Saraiva, cujos alguns integrantes eram originários do norte da Catalunha, espanhóis da Maragataria, era usado de forma pejorativa pelo estado para tentar afirmar que os combatentes eram estrangeiros, mas entre os federalistas, com o tempo perdeu o caráter ofensivo e foi incorporado pelos revoltosos, que adotaram o nome, como insígnia de sua causa em particular. Adaptados ao apelido imposto pelos adversários, não hesitaram em fundar um periódico com esse nome para divulgar as suas ideias na província.

De um dos seus lideres Gaspar Martins se dizia: “era um chefe militar na guerra e civil na paz. Em torno dele agrupavam-se as tropas na guerra e, mais tarde, eleitores na paz. Ele era respeitado, obedecido e amado, por que tinha tanto de protetor quanto de comandante. Os homens eram fiéis até a morte, e por ele ou pela causa que ele encarnava matavam ou se deixavam matar. Esta fidelidade era total e absoluta, para a vida inteira, para o que desse e viesse.” (Senador Mem de Azambuja Sá – 1905-1989). 


Esse tipo de relação entre o chefe politico e militar e seus comandados era natural na região sul do Brasil e foi forjada nas lutas de fronteira que deram origem ao estado, na Revolução Farroupilha e nas guerras ocorridas no continente onde os gaúchos sempre lutaram como cavalaria de vanguarda comandada por seus caudilhos, naturalmente desembocando nas relações partidárias que é parte integrante da personalidade regional. Essa tradição transformada e reinventada assume sempre o aspecto de dicotomia entre o Bem e o Mal, o inimigo é sempre o “bandido”, o “corrupto” e não pode ter apoio nem quando sua ação politica é a melhor para o bem comum. A violência então é a expressão que irá pautar as relações politicas desde 1893 até 1934. 



Os governistas eram denominados Chimangos em função de um poema escrito por Ramiro Barcelos sob o pseudônimo de Amaro Juvenal, uma sátira contundente contra Antônio Augusto Borges de Medeiros. 


Os dois grupos políticos com seus respectivos chefes, de um lado os republicanos, também chamados de Legalistas ou Pica Paus, que tinham apoio nas elites rurais do litoral e da serra, bem como das classes médias urbanas, e do aparato policial do estado e do outro lado, os federalistas ou maragatos, compostos de estancieiros da campanha que se denominavam Libertadores, e seus grupos de guerrilha a cavalo que hoje em dia poderiam ser considerados subversores da ordem estabelecida estavam em vias de disputar o poder e resolver suas diferenças pelas armas nos campos de Marte.



Chefes Maragatos

A estratégia dos revoltosos em 23 já não eram as tradicionais cargas de lanceiros, e quando podiam evitavam o confronto direto, pois o inimigo dispunha de modernas armas automáticas e metralhadoras que ceifavam a vida dos cavaleiros. As colunas estavam em movimento constante evitando um combate aberto, pois dispunham de pouca munição e armamento escasso e de baixo calibre em relação aos oponentes, e evitavam os grandes centros urbanos pela impossibilidade de manter um cerco. Eram normais as escaramuças e golpes rápidos em posições estratégias e recuos táticos quando a força do inimigo era superior. Não ocorreram, portanto, batalhas significativas, mas escaramuças que podiam durar horas entre os oponentes.

Enquanto a Revolução de 1893-95 foi marcada por violentos entreveros e com a prática da degola de prisioneiros de ambos os lados, prisão de adversários políticos, destruição de propriedades, pilhagem de gado, dividindo o Rio Grande do Sul nas duas facções rivais, com a intransigência de Júlio de Castilhos que não permitia dar quartel ao adversário, chegando a proibir o enterro dos mortos da força contrária e se negando a assinar um acordo de paz honrosa, dizendo que se a oposição quisesse poderia depor as armas que teriam a garantia da lei, em 1923 a situação foi diferente, com refregas pontuais dos revoltosos, que não faziam quartel, e que agiam como uma guerrilha atacando o inimigo de surpresa, sempre em movimento, ganhando tempo e apostando numa intervenção federal. Por sua vez os governistas tentaram manter a ordem sem cometer excessos, para demonstrar a opinião pública que tinham sido os rebeldes a quebrar o pacto de convivência política sem motivo e que agiam como bandoleiros, incitando a desordem no interior do Rio Grande do Sul. O termo bandoleiro foi utilizado várias vezes por Borges de Medeiros em seus telegramas para as forças leais ao seu governo e foi assim repercutido pela imprensa governista.

Os Libertadores traziam armamentos e munições pela fronteira da Argentina, contavam com simpatizantes lá e a brigada militar tinha armamento de melhor qualidade, submetralhadoras tchecas e farta munição fornecida pelo Estado. 


Os Combates – O Combate do Capão do Mandiju



“Em 25 de Junho, após intensa vigília de armas, deu-se a rápida aproximação dos contendores, no 2° Distrito de São Borja. Tudo se decidiria nas 24 horas seguintes. Tendo o 7° Corpo Auxiliar dos legalistas tomado posição junto à Serra do Iguariaçá, e se protegido no Capão do Mandiju em linha, com todo o seu efetivo a pé, na coxilha aberta, sem entrincheiramento, onde montaram seu bivaque com o objetivo de cortar o avanço de parte da força Libertadora comandada pelo Cel. Anibal Padão, veterano de 93 e conhecido por sua bravura desmedida, e assim evitar seu avanço sobre Santiago. A coluna Padão havia se desmembrado do corpo principal da tropa de Honório Lemes para dificultar a perseguição em ação diversionista, enquanto a tropa principal seguia para o Caverá chefiada pelo general guerrilheiro e seguia em direção às missões conforme as ordens recebidas de formar contingente na região. Ao chegas áquela altura da marcha não restou alternativa ao comandante rebelde, ou retroceder ou oferecer combate.


A ideia de oferecer combate gerou desavenças entre os comandantes da divisão libertadora. A maioria preferia evitar a luta, visto que, além de estarem ainda em fase de reorganização do contingente e mal armados, tinham a missão de juntar-se mais dia, menos dia, à coluna de Honório Lemes. Padão, que não queria desviar-se, alvitrou solução conciliatória: ele, com apenas 40 homens escolhidos, cobriria o flanco e franquearia a passagem do restante da força que não ultrapassava de 260 homens. De mais a mais, teria dito, já estava cansado de andar retirando. O Cel. João Lucas ainda tentou convence-lo de tentar atrair a força contrária dos legalistas para fora das suas defesas, equilibrando em campo raso o primeiro embate. O local era de difícil acesso, coxilha e ladeira descendo até o Capão do Mandiju, ao lado, um sangão, coberto de árvores como uma cordilheira, e por ali estendido, com o apoio de metralhadoras, o 7° reforçado de policiais municipais de Itaqui e São Borja e de réus pronunciados, tirados das respectivas cadeias, num total de 300 efetivos.”

“Afinal aceito o plano do Cel. Padão, este, com os coronéis João Lucas e Mário Garcia, gente de Santiago, ansiosa pela querência, fez seu grupo marchar pela estrada. Tal como desejava, não desviou o rumo. Por volta das 8 da Manhã de 26 de Junho, uma terça-feira normal para inverno, o sol a titubear pelas faldas rosilhas da terra, as avançadas da 7° abriram fogo contra o inimigo que se aproximava. Mau presságio: o grosso da coluna rebelde, que descrevia um longo círculo pela esquerda para despista, precipitou-se em debandada. Para evitar o pior Padão ordenou à Mario Garcia levasse um ataque pelos flancos para desalojar o inimigo. Mais que nunca estava determinado a lutar. Nem sequer vacilou perante a desigualdade do combate e apelou para o socorro daqueles que por amor próprio tinham sofreado junto às pontas da restinga do Paraguai ou pelos socavões circundantes: 90 companheiros acorreram, pois, os demais já iam longe.

Com esse grupo de 150 combatentes, Padão alinhou fogo. Porém na medida em que recrudescia a peleja, as evasões dos seus rareavam-lhe as fileiras mais que as balas contrárias. Era visível, que se lançando a fundo, sem reserva de tropas e sem a cobertura daqueles que procuravam campo neutro na Zona Federal, animava-se apenas com a obsessão da batalha. Consciente de que o abandonavam, ao ver João Lucas tombar gravemente ferido ao seu lado por volta das 9 hora, Padão afirmou ainda que, ganhasse ou perdesse, iria quebrar a espada na cara do chefe fugitivo. 

A fuzilaria ininterrupta frisou os ares até o meio-dia, regulada pelo ir e vir das cargas de Padão, que pelejara como fizera no Alegrete, sem se entricherar, sem apear. Era o desassombro temperado pela audácia a percorrer as linhas varejadas pela metralha. Erguendo a dextra, em cujo pulso balançava vertical o inseparável mango, chicote chapeado em prata de lei, pedia calma aos que restavam – não mais de 50 -, após 4 horas de fogo. “Sabendo-se perdido, assegurava-lhes iracundo, que se não vencesse, não queria mais viver.” 


Padão foi visto pelo inimigo galopar contra as trincheiras atirando de revólver. Voltava para carregar a arma e galopava novamente em direção ao entrincheiramento desafiando a pontaria dos adversários. Era um alvo fácil. Combatia sempre a cavalo, sem dispensar seu pala branco. 


A distancia das linhas opostas, quase tangentes pelo influxo de tantas cargas repetidas, encurtara terrivelmente. A estratégia de Anibal Padão em acometer sobre a linha inimiga e buscar aproximação cada vez maior era a tática usada com sucesso na revolução de 93. A instrução de tiro dos legalistas era nula. O fuzil adotado era o Comblain cujo o alcance máximo, portanto neste tipo de combate ineficaz, era 1200 metros. Acontecia porém que saber regular a alça de mira, um artigo de luxo, num campo sem florestas, nem cerros, pela vastidão das campinas, a mira estava sempre regulada para 1200 metros, por que de muito longe se avistava ao inimigo. Quando mais perto chegava da linha de tiro menor era o perigo de ser alvejado, daí a facilidade de ainda utilizar as cargas de cavalaria, muitas vezes inoportunas, para tentar desbaratar a linha do inimigo.

Atiravam-se já de uns 30 metros, ambos os lados com as munições se esgotando perigosamente pelo compasso da artilharia. Ao velho comandante que não costumava se proteger esperava certa a fatalidade da própria valentia: dessa distância curta recebe um tiro nas costas. Tiro de pontaria? Bala perdida? Ninguém consegue saber em meio a fumaça do entrevero.

Percebendo o momento fatal, Mário Garcia encostou-se em Padão, já muito pálido a galopar em direção a sua gente, e amparou-o até que um ajudante, seus fiel João Barriga, criado desde pequeno na sua estância, salta na garupa de seu cavalo, pode abraçar-lhe o corpo meio pendente que ainda se apegava aos últimos alentos tentando manter o prumo sob o tracejar das balas. Mesmo mortalmente ferido insistia, ao perceber desarticular-se sua tropa, em se manter no posto, e na sua montaria, onde queria morrer. O projétil varara o tórax; saíra no peito; o sangue jorrava em borbotões; era o fim. Pouco depois expirava num catre do primeiro rancho que encontraram por perto. Completaram-se exatos cem dias de marcha dos revoltosos. 

O epílogo do combate foi um lance de calculada inteligência do tenente-coronel legalista Deoclécio Motta. Avaliando o desgaste do inimigo e a perda da moral de combate com a baixa do bravo comandante ordenou a maciça carga geral pelo centro enquanto fazia uma ala de cavalaria do 4° esquadrão contornar o mato e picar o que ainda restava do flanco esquerdo levando o inimigo de roldão. Deoclécio já não contava com munição suficiente para manter a artilharia contra o inimigo e seu entrincheiramento por muito mais tempo. Jogando tudo na sua investida sobre o inimigo mudou a sorte do combate ao seu favor. A manobra da cavalaria foi ordenada pelo major João Fontella e comandada por Spartaco Vargas. Dispersos os inimigos pela ação rigorosa de cavalarianos e infantes, a pé ou a cavalo se dispersavam os federalistas em todas as direções, e foram uns novamente se aglutinar na Brigada Missioneira e outros para o 2° Distrito de São Borja, em número de 200 apresentando-se ao Cel Hortêncio Rodrigues e alguns poucos buscaram abrigo na neutra Zona Federal onde dispunham de apoio das Forças Armadas Federais, cujos oficiais eram simpatizantes da revolução. O total de baixas de ambos os lados é impreciso. Uns falavam de 11 outros de 7 mortos incluindo o comandante. Mas o número de feridos deve ter sido considerável.” (Notícias dos Combates – Fernando O’Donnell)

A ousadia dos atacantes de enfrentar de peito aberto o entrincheiramento dos defensores num ataque em aclive por mais de cinco horas à força de investidas sucessivas, armados com armas brancas e quase nenhuma munição, embora redundasse no esgotamento da ofensiva forçou o inimigo a um volume de fogo que também deixou-o exaurido. Os 150 homens comandados por Padão obrigaram que 300 esgotassem sua munição. Por outro lado, a calma do comando dos defensores em manter a posição favorável sem tentar uma perigosa surtida em campo raso, que seria desvantajosa, e ao final o oportunismo em comandar o ataque e a carga geral com a volteada de lanceiros para desbaratar o inimigo e a escolha do local de passagem forçada onde cortou o avance da tropa de Padão, conferiu ao Tenente-Coronel Deoclécio Motta a vitória final no confronto. 



Coronéis Maragatos



Paz Provisória – 



Os movimentos de forças que ocorreram na região das Missões compreendida entre os municípios de São Borja, Itaqui, São Francisco de Assis, Santiago e São Luís Gonzaga, cujo centro do conflito foi curiosamente o local onde tombou Anibal Padão, não tiveram trégua. A exemplo do resto da Província marchas e contramarchas ocorreram com choques ocasionais quando sucedia-se a dispersão dos vencidos, que nos seus rastros multiplicavam-se outras escaramuças menores e anônimas, de forças reagrupadas pela sina da derrota, ou reanimadas pelo calor da vitória, de ambos os lados, sem um resultado definido.

Os maragatos usavam basicamente a cavalaria, as velhas táticas dos cavaleiros das estepes, em típica luta de guerrilha, de atrito e fuga, evitando o combate frontal por estarem mal armados e municiados. As carabinas de repetição e as metralhadoras da Brigada Militar e dos corpos provisórios inviabilizavam as lutas com armas brancas comuns nas guerras passadas. Restava aos revoltosos a mobilidade e o ataque de surpresa, seguido da retirada estratégica. O mestre nesse tipo de luta foi com certeza Honório Lemes.

As tropas do governo e seus provisórios dispunham de melhor armamento, muitas vezes usavam veículos automotores e aviões de reconhecimento e se comunicavam pelo telegrafo e telefone, o que prenunciava os novos tempos que chegavam na modernização da estratégia e da logística do combate moderno. O declínio dos embates de cavalarianos nos pampas e o fim da importância estratégica do cavalo marcaram esse conflito e seus protagonistas que anteviam o fim de uma era.


Pilotos de Aviação

Em Outubro o solo missioneiro foi assaltado pela coluna de Honório Lemes, o “Leão do Caverá”. Os rebeldes ocuparam rapidamente São Francisco, no dia 2, Santiago e Jaguari, em 3 e 4, São Luís, em 13, combateu em Itaroquém, em 10, em Santana, em 16 em Carajazinho, em 17, a partir dessa localidade empreendeu a chamada descida ou Volta da Serra, em direção sul; em 19 acampou em Jari, em 21 ocupou a Vila de São Pedro e finalmente ao deixar em 23 o acampamento no Vacacaí, retornou ao seu refúgio no Caverá completando 20 dias de movimentação continua obrigando o inimigo, as tropas legalistas comandadas pelo seu arquinimigo Flores da Cunha, a uma tenaz e custosa perseguição. 



Em Novembro chegava o emissário do governo federal ao Rio Grande, o general Setembrino de Carvalho. Às 7:00 horas do dia 7 de Novembro foi assinado o armistício, dando começo às negociações. Finalmente, em 14 de Dezembro, Assis Brasil e, em 17, Borges de Medeiros firmaram o Pacto de Pedras Altas. O Acordo trouxe ao Rio Grande do Sul, em troca de mais um período de governo de Borges de Medeiros, a proibição de reeleição e o ajustamento do sistema eleitoral aos padrões federais, com fórum próprio de juízes para resolver as disputas. 



A Revolução de 23 chegava ao fim sem ter atingido seu principal objetivo que era provocar a intervenção federal na Província, e derrubar Borges de Medeiros e seu partido que a dominava desde a proclamação da República o seu governo. Mantiveram-se acessas as diferenças pessoais, e os progressos dos revoltosos foram poucos, com confrontos nos municípios entre as duas facções. As prisões ilegais, os assassinatos, e o êxodo das populações temerosas eram denunciados como crimes da ditadura rio grandense. Nem mesmo a ascensão de representantes dos libertadores nas eleições de 24 à Câmara Federal ajudou para acalmar os ânimos, pois Borges de Medeiros conseguiu manter-se com seu quinto mandato consecutivo assegurado até 1927. 


Com as tropas desmobilizadas, lembra Batista Lusardo: “voltamos para casa levando gente e cavalhada. Para atender à clausula do desarmamento, entregamos ao Exército nosso material imprestável (o bom havia sido escondido para uso posterior, pois sabíamos com que inimigo estávamos lidando)” 

Os ressentimentos e agressões contra os maragatos continuaram após a paz, o General Portinho foi agredido em Santa Bárbara e teve que sair pelos fundos de um hotel. Dois provisórios atacaram o General Rodrigues Mena Barreto que reagiu e matou um deles e pôs o outro em fuga. Mena Barreto permaneceu preso cinco meses no 8° Regimento do Exército. Honório Lemes foi desfeiteado em Cacequi e Zeca Neto, na fronteira. As perseguições aos maragatos só findaram em 1928, com a posse de Getúlio Vargas, sucessor de Borges de Medeiros no governo do Rio Grande do Sul.


Os 18 do Forte 
  
Enquanto isso o país fervilhava, e a conspiração dos tenentes nas casernas corria solta contra os desmandos do presidente Arthur Bernardes, agora fiador da permanência de Borges de Medeiros no poder e repositório de uma paz desonrosa para os revoltosos. Tão logo se noticiou a revolta de São Paulo em 5 de Julho de 1924, secundada por débeis movimentos no Amazonas e no Pará, em Sergipe e no Mato Grosso, e já o deputado libertador Arthur Caetano da tribuna denunciava que “todas as liberdades” desde havia muito tempo tinham desaparecido do Rio Grande.



Os revolucionários do sul tomaram de ainda maior simpatia pelos objetivos do levante paulista quando souberam que seu comandante era o general rio grandense e veterano maragato de 1893, Isidoro Dias Lopes, que vinha conspirando junto às forças armadas e conseguiu cercar-se de oficiais que acreditavam ser a luta armada a única opção que restava para dominarem os rumos do país. Na época, neste contexto, a província do Rio Grande era fundamental para qualquer movimento sedicioso, pois contava então com 25% do contingente das Forças Armadas em terra.



Simpatizantes em 23 da revolução no sul a oficialidade envolvida na conspiração esperava o sinal para que a mobilização fosse iniciada e por razões estratégicas o movimento paulista tivesse também reflexos no sul, com apoio de tropas e adesões massivas dos rebeldes, que impedissem o movimento de contingentes legalistas contra os revoltosos de São Paulo, e também possibilitassem a descida para o sul de colunas rebeldes, no caso de necessidade de retirada, para fazer junção ao corpo sublevado nas províncias sulistas.


Em 27 de Julho a coluna de Isidoro, em acordo com outro prestigioso general gaúcho, João Francisco Pereira de Souza, retirou-se de São Paulo em direção ao sul, na busca de aproximar-se de forças potencialmente aliadas, escapando ao cerco iminente. Tinham o apoio de praticamente a totalidade dos oposicionistas gaúchos e fixaram suas forças no Oeste paranaense após árdua marcha, no aguardo de novos movimentos ao sul. 

A missão enviada em nome do comando vindo de São Paulo e estacionado em Foz do Iguaçu, para ultimar os detalhes do levante, era composta por Juarez Távora, Siqueira Campos, Anacleto Firpo, Alfredo Canabarro, e Iran Cunha Filho, estabeleceu as primeiras diretrizes em 12 de Outubro, com Honório Lemes, então em Artigas. De lá foram expedidas cartas a Luís Carlos Prestes, na época Capitão dos Engenheiros servindo no 1° Batalhão de Engenharia de Santo Ângelo ligado à ferrovia, e a outros oficiais de confiança das unidades de Alegrete, Cachoeira, Itaqui, São Borja e São Luís, num total de 17 guarnições federais comprometidas. A seguir, acertada com Assis Brasil, o chefe civil, e com o general Zeca Netto, a participação armada dos libertadores, concluíram-se os planos e estratégias que seriam desencadeados em Outubro.

Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo de 02/07/1978, Prestes declarou que todos os que conspiravam no Rio Grande não foram devidamente informados do movimento em São Paulo. Surpreendidos então pela sucessão dos acontecimentos, os tenentes do sul intensificaram a conspiração para tornar possível o levante na noite de 28 de Outubro. A junção das forças rebeldes preocupava então o governo do estado. Pretendiam fechar as passagens da fronteira entre o Rio Grande e Santa Catarina. 

Em 27 de Outubro, o tenente Siqueira Campos, que tinha chegado disfarçado com trajes gaúchos em São Borja cruzando o Rio Uruguai, hospedou-se na casa de Dinarte Dornelles. Ali passou a noite conferenciando com oficiais e civis até o anoitecer de 28 quando se dirigiu ao quartel do 2° RCI, em estado de sublevação, onde os sargentos já tinham se apossado do arsenal e pusera a tropa de sobreaviso pretextando um possível ataque da Brigada, no caso o 7° Corpo Auxiliar. 

Em companhia dos Tenentes Aníbal Benévolo e Sandoval Cavalcanti, Siqueira Campos entrou às 20 horas no quartel do 2° RCI, às margens do Rio Uruguai. Uma capa não permitia a sua identificação. No pátio do quartel, diante da tropa rebelada, Aníbal Benévolo anuncia com voz enérgica: “ ─ Soldados, eis o vosso comandante !” E apontando para o oficial: “─ Ele é o Capitão Siqueira Campos !” Uma energia indescritível tomou conta da tropa. Eles iriam ser comandados pelo herói do 18 do Forte. Com a mobilização logo os pontos estratégicos foram ocupados, os militares que não tinham apoiado o movimento foram presos após breve troca de tiros e a cidade foi tomada quase sem combate. Garantida a ordem e não havendo resistência armada, os prédios públicos e agencias bancárias foram ocupados com funcionários leais ao levante. Os serviços essenciais foram mantidos sob ordens severas. Requisitaram-se também os veículos automotores, pneus e gasolina. Os voluntários civis foram colocados imediatamente em adestramento. 

No restante do Estado, apesar da razoável adesão ao movimento, muitas forças importantes mantiveram-se leais ao governo federal. Oficiais tinham sido afastados ou presos antes de se iniciar a sublevação prejudicando a mobilização de mais forças. 

O General Honório Lemes entrou em Uruguaiana às duas horas da Tarde do dia 2 de Novembro com 2.000 voluntários. Sua presença na cidade mais importante da fronteira do Estado selou em definitivo o apoio dos libertadores na rebelião. Esvaziada a vantagem inicial da surpresa as forças legalistas se prepararam para combater os insurrectos. Novamente em campanha o Coronel Flores da Cunha seguiu célere para Uruguaiana combater seu sempre inimigo Honório Lemes. 

Apesar de tudo, as três forças dos rebeldes, que estavam divididas continuavam a agrupar combatentes: em três de novembro Honório já contava com mais de 2000 homens, Prestes reunira 1.200 e Siqueira tinha a disposição em torno de 500 entre soldados e voluntários civis. 

Marchando com duas colunas, uma principal e outra secundária, que lhe protegia o flanco esquerdo, comandada pelo primeiro-tenente Aníbal Benévolo, Siqueira Campos seguiu para atacar Itaqui cujas tropas legalistas ameaçavam e impediam a junção do corpo ao restante das forças rebeldes ao grosso do contingente de Honório Lemes. De Benévolo se dizia ser um oficial de carreira amadurecido, de grande talento e um revolucionário dedicado. Era um líder nato que chamava para si a responsabilidade da tropa. A estratégia de Siqueira Campos era atacar Itaqui com o socorro das tropas de Uruguaiana e evitar um ataque surpresa pela retaguarda. Essa possibilidade era real, pois o 7° Corpo Auxiliar, reforçado por 250 republicanos, já marchava no encalço dos comandados de Siqueira e Benévolo. 

Somente um golpe decisivo e rápido poderia garantir o controle da margem leste do Rio Uruguai e impedir o envolvimento pelo inimigo das forças rebeldes, como havia idealizado Prestes. 

Recuando para Uruguaiana ao sofrer resistência dos itaquienses comandados pelo intendente Osvaldo Aranha após débil ofensiva, Juarez Távora comprometeu em definitivo a estratégia de ataque ao reduto legalista. Para piorar Honório Lemes abandonou em 5 de Novembro sua posição na cidade sob seu domínio. Com o movimento da coluna mais importante e a perda de ligação Siqueira Campos apressou-se no avanço sobre seu objetivo. Para tanto pediu apoio de Prestes. Mas seu pedido tardou a chegar, 250 Km separavam as duas forças enquanto os legalistas movimentavam tropas de Santiago. Apesar disso uma Companhia, comandada pelo tenente Mario Portela Fagundes seguiu de São Luís em automóveis até São Borja, e depois uma segunda coluna comandada pelo tenente comissionado Honório dos Santos. Juntou-se a ela o próprio capitão Prestes. Sua presença indicava a importância do objetivo. A Companhia de Portela seguiu então de trem até Recreio e de lá até o acampamento de Siqueira Campos e a outra Companhia, de Honório dos Santos, ficou em São Borja aguardando transporte. 

Enquanto isso seguia a coluna de Honório Lemes e Juarez Távora, já longe de Uruguaiana para o sul em busca de aumentar seu contingente com mais sediciosos. Então no dia 9 deu-se o confronto de Guaçuboi e os rebeldes foram aplastados pelo inimigo deixando de existir essa força como elemento de valia no movimento das armas. 

Impelido pelo desejo de alcançar uma vitória para os revoltosos Siqueira Campos foi apresentar armas contra Itaqui. Suas forças após combate contra tropas mistas compostas de soldados e civis foi obrigada a recuar. Com sua vanguarda destroçada por uma carga de cavalaria concentrou-se próximo de Tuparai. A pequena coluna do Tenente Aníbal Benévolo continuava protegendo seu flanco leste e a retaguarda, subdividida em dois grupos, um na vila do Recreio com 20 homens e outro com 70 na Estância dos Figueiredos, 1 légua distante. 

Combate na Estância dos Figueiredos – 

Com a ofensiva governista pouco restou para Siqueira Campos a não ser confiar que Benévolo pudesse conter o avanço do inimigo que acometia pelo leste. Isolado após ter destruído a ponte que ligava São Borja sobre o Rio Butuí restou-lhe esperar que Benévolo contivesse o avanço do 7° Corpo Auxiliar que pretendia sufocar as tropas sitiantes. Os 2 esquadrões do 7° Corpo Auxiliar comandados por Deoclécio Motta saíram em 30 de Outubro de Santiago, que foi logo ocupada pelos revoltosos. Após aprovisionar-se de mantimentos e reforços seguiu em ziguezague em direção ao objetivo usando as mesmas estratégias usadas pelos revoltosos em 23 levando em conta uma presença maior do inimigo e sua superioridade numérica, correndo 32 léguas em 10 dias. Sabia que os inimigos concentrados em Tuparai e protegidos na retaguarda por Benévolo dificilmente se deixariam ser pegos de surpresa. 

Ao se aproximar do inimigo mandou acelerar em marcha noturna e no dia 11 de Novembro, uma manhã clara e quente, sua vanguarda, o 2° Esquadrão comandado pelo capitão Pradelino Peçanha, surpreendeu o inimigo. Mal espoucaram os primeiros disparos o pânico se apossou dos rebeldes que foram perseguidos até a entrada da Vila. Depois de breve resistência logo também esses debandaram engrossando a fuga. A reação do inimigo alertou ao experimentado Deoclécio a verdadeira dimensão da surpresa imposta aos defensores. Não contavam com a proximidade dos legalistas. Urgia um avance em direção ao grosso da tropa inimiga. Uma légua adiante deparou-se com o inimigo entrincheirado na Estância dos Figueiredos. 

A posição defensiva reforçada por Benévolo era privilegiada. Havia distribuído suas forças em linha reta a partir de ambos os oitões do casarão da sede. O entrincheiramento dispunha de 3 metralhadoras, 1 entre um galpão e uma mangueira e as outras em cada extremidade da linha. Abrangia a linha 600 m de reta. Pouco antes das 10 horas da manhã, os homens do 7° Corpo Auxiliar que tinham desmontado e deixado seus cavalos 800 m das trincheiras atacaram em massa a posição. Espalhando-se pelo terreno em aclive, subiram a coxilha agachados e fazendo fogo sem parar. A meio caminho, rastejando pelas macegas, dividiram-se em três direções, visando atingir o topo, o ponto mais alto do terreno ao sul. 

Após uma hora de tiroteio com grande deficiência de tiro por parte dos revolucionários, o cerco dos atacantes se fechava. Foi o sinal para a debandada da tropa pelos fundos, único espaço que os legalistas ainda não tinham fechado. Pegando a primeira montaria que encontravam atiravam a esmo e partiam em rumo de Tuparai ao risco de serem alvejados na disparada. A ferocidade dos atacantes forjados pela disciplina de batalha tinha tornado nula a vantagem dos defensores. Benévolo ainda resistia sob uma árvore em que se postara no recanto sul da sede. Já não tinha controle sobre seus homens. O bravo tenente resistiu uma hora aguardando reforços de Siqueira Campos. Pouco antes do meio-dia reuniu o que restara de seus homens e intentou assestar uma metralhadora e ao expor-se ao fogo inimigo recebeu um tiro certeiro na cabeça. O projétil entrou pela boca e saiu atrás de sua orelha direita. 

É da tradição oral afirmar que Benévolo apossou-se de uma metralhadora e atirou até o fim, enquanto os atacantes admirados pela sua bravura ainda tentaram pegá-lo vivo, e que ele foi atingido ao tentar desemperrar a arma. 

Com sua morte o restante da tropa tratou de montar os cavalos que ainda dispunham e bateram em franca retirada. Sabiam que os inimigos tão cedo não iam alcançá-los, pois tinham deixado seus cavalos presos 800 m dali. Foram dispersos para todos os lados, só uns poucos conseguiram reincorporar-se às tropas de Siqueira Campos. Deoclécio ainda mandou um esquadrão persegui-los por uma légua e depois deixá-los entregues a própria sorte. Afinal ali não se combatiam os veteranos libertadores como os do Capão do Mandiju, mas jovens recrutas da “Primavera da Pátria”, que fugiam em desordem completa e já não eram mais uma força combatente. 

A cinco léguas dali Siqueira e Portela vem chegar o que restou da estropiada tropa de Benévolo. Ao cair da noite os dois comandantes embarcam num Ford bigode aberto seguidos de escolta montada. Siqueira vai tentar um derradeiro golpe contra Itaqui, enquanto Prestes inteirado da derrota sai de São Borja para reforçar suas posições no noroeste do Estado. 

“Nessa ocasião, eu me retirei de Santo Ângelo e instalamos o quartel general na cidade de São Luís, ocupando também o município de São Nicolau e parte de outros...Nós mantivemos essa posição, à espera de que, de Iguaçu, no Paraná, nos mandassem munição, pois as unidades do Rio Grande que se levantaram estavam pessimamente municiadas e seu armamento era precário.” (Depoimento de Luis Carlos Prestes a Nelson Werneck Sodre) 

Prestes, que já assumira a liderança militar do movimento do sul, optou por esperar nas cercanias de São Luís, que de Foz do Iguaçu enviassem munições e armamentos que careciam todas as suas unidades de combate. 

Perseguidos por Osvaldo Aranha e pelo Corpo Provisório de Deoclécio Motta que tinham feito junção após algumas escaramuças de despistamento dos revoltosos Siqueira Campos não hesitou mais em procurar a fronteira. Rumou para Japeju e atravessou a nado o Rio Uruguai, não sem antes conseguir atravessar uma balsa para o que sobrara do contingente e foi recebido na fronteira e desarmado pelas autoridades da Argentina junto a alguns companheiros. Mas na altura da ponte, um de seus comandados, destemido sargento, reuniu um pequeno contingente que conseguiu fazer uma volta à altura do Rio Ibicuí regressando à São Borja e depois retornando à São Luís onde estava acantonado Prestes. 

Prestes reunido com o General João Francisco, emissário de Isidoro resolveram após um dia e uma noite de conversações em São Borja reunir as forças restantes e marchar com sua coluna para Foz do Iguaçu onde permanecia o comando. Prestes é promovido a coronel comandante da Divisão do Centro. Dele o general deixou sua impressão: “Aqui temos uma grande figura, um futuro grande general (...). Vivi séculos naquele dia, porque meu coronel executou e realizou tudo melhor do que se me afigurava (...) A consciência me diz que se eu próprio, como queriam outros, tivesse me colocado à frente daquelas tropas, não teria desempenhado com tanto brilhantismo o papel que Prestes desempenhou...”(Carta de João Francisco Pereira de Souza a Isidoro Dias, Buenos Aires, maio de 1925) 

Porém a medida que o cerco se fechava com o avance de 7 colunas governamentais, com 14000 homens em armas marchando sobre São Luís, os rebeldes eram compelidos a se concentrar. Logo São Borja foi abandonado. Já então uma das colunas atacantes desdobrava sobre Santiago e os últimos rebeldes são-borjenses cruzavam o Rio Uruguai e emigravam mais uma vez. O coronel reúne então 3000 homens e os divide em três destacamentos então denominada Divisão do Centro ou Invicta. A coluna formada nas imediações de São Luís Gonzaga seguiu para juntar forças com o comando que operava em Foz do Iguaçu rompendo o cerco. Dessa coluna formavam alguns dos que seriam principais expoentes da politica nacional: Os generais Juarez Távora, Cordeiro de Farias, Miguel Costa e Nelson de Melo, o Ministro João Alberto, o Capitão Djalma Dutra, o tenente Siqueira Campos, o tenente Portela Fagundes e o caudilho Nestor Veríssimo, que compunham a força rebelde depois denominada Coluna Prestes que percorreu o país de sul a norte na esperança de contagiar com sua presença o espírito de rebeldia de um povo oprimido e sacrificado pelas suas elites do imenso interior brasileiro. Mas essa é outra história. 

O Crepúsculo da Cavalaria Montada – 

Dizem de Flores da Cunha que era homem extremamente generoso. No episódio da prisão de seu grande adversário o General Honório Lemes, que seguia combatendo em crescente desvantagem, e no dia 08 de Outubro de 1925 por fim se rendeu, talvez o chimango ao perceber que ambos viviam os últimos dias da força da cavalaria gaúcha como vantagem estratégica nas lutas intestinas que sangravam a República e eram os dois últimos guerreiros dos pampas, comportou-se como um grande homem perante a derrota do outro ilustre par e sempre inimigo. 

Contam que ao ser preso, Honório foi levado à presença de Flores. Ambos guerreiros e muito sentimentais, não puderam esconder suas emoções. “A prisão de Honório foi um momento brutal...” Escreveu mais tarde o Gen. Flores da Cunha “...ele estava esperando a faca e eu o abracei. Honório arrancou do revolver e do espadim e me entregou, eu disse: guarde suas armas general, um homem como o senhor não deve andar desarmado – abraçaram-se novamente. 

Osvaldo Aranha que presenciava o momento histórico se emociona, não aguenta e explode aos gritos: “Viva o Rio Grande, viva esta terra e esta gente.” 

Honório baixou a cabeça e disfarçando em picar fumo para fazer um palheiro escondeu a emoção dos olhos marejados. 

Seguiu a entrevista ali mesmo. Honório pergunta à Flores: “Como quer que lhe chame ? De doutor ou general ?” “─ Sou bacharel de direito, pode me chamar de doutor se quiser”... “─ Está certo”, responde-lhe Honório, pausadamente: “porque general até um índio rude e grosso como eu pode ser”... respondeu humilde um dos maiores comandantes e estrategistas que o Rio Grande conheceu, o nosso Sun Tzu dos pampas. 

Novos Tempos – 

A classe operária ficou distante desses conflitos que representavam os anseios da pequeno burguesia em busca de mudanças e da modernização politica do país nas pessoas de seus oficiais de baixo escalão e a tentativa de manutenção do poder pela Casa Grande. As rebeliões dos maragatos e dos tenentes de 23 e 24 não contaram com o apoio dos operários, que classificaram a revolta, acertadamente, como alheia aos seus interesses de classe, que eram a diminuição da jornada de trabalho, melhores salários, diminuição da carestia através de controle efetivo da inflação e moradia. 

Os lideres anarquistas estrangeiros foram expulsos após a fracassada greve de 1919. Os socialistas e marxistas tomaram conta dos sindicatos tentando formar uma frente única através do recém-fundado Partido Comunista, proibido logo após sua fundação em 1922. A preocupação dos trabalhadores urbanos era manterem seus empregos ameaçados pelas levas de trabalhadores rurais que chegavam tangidos dos latifúndios em função da crescente mecanização da lavoura. Estes iam habitar os cortiços e serviam os mais saudáveis para ingressar nas forças dos corpos provisórios ou nas tropas maragatas. 

Todos os ilustres personagens que participaram nesses acontecimentos iriam chefiar mais tarde os interesses do Brasil após a revolução de 30 e na implantação do Estado Novo que marcou o fim do coronelismo. A cavalaria montada nunca mais iria representar uma ameaça real ao poder militar no Brasil, a guerra moderna mecanizou o deslocamento de tropas de forma irreversível. O gaúcho montado perdia em definitivo sua importância estratégica no encontro de forças da politica nacional. 




Blog dedicado à minha filha Flora Selma, cursanda de História na UFRGS

Bibliografia: 

1) Notícias dos Combates - De Capão do Mandiju e Estância dos Figueiredos - Fernando O'Donnel - Ed. Martins Livreiro - 1985
2) Chimangos e Maragatos - Moacir Flores - Ed. Pradense - 2014
3) Os Pica-Paus e os Chimangos - Ed. Martins Livreiro - 2014