Totelpec acorda mergulhado no suor. O sonho
claro foi uma visão do deus, um olhar através de uma fresta, uma pequena
abertura de uma pedra, espectral, imaginária. A luz ofuscante que de primeiro cegou seu olho e foi aos poucos
arrefecendo o brilho, imagem que ia se abrindo e revelava o fim dos tempos.
O demônio de longas barbas sempre surgia no sonho
comandando exércitos inimigos e um mar de sangue inundava as ruas da cidade
como rios caudalosos descendo para os canais. Copiosos choros de mulheres e
crianças, gritos lancinantes, os do clã do jaguar e da águia, a fina flor dos
guerreiros do reino explodindo em pedaços, os incêndios consumindo o mercado,
os templos, os palácios, as casas do povo e ele testemunhava tudo impotente,
sem forças, inativo, por trás daquele muro espesso.
Deu um pulo da rede e sua mulher, a principal,
remexeu-se ao lado incomodada, mas logo mergulhou novamente no sono. Os filhos
dormiam sossegados no quarto ao lado, com as três escravas concubinas, e ele
saiu da casa em silêncio buscando o consolo da noite para respirar o ar noturno
e conferir que o seu mundo continuava intocado, e que suas visões, provocadas por demônios ou deuses, não haviam
ainda se consumado.
Tudo permanecia inalterado. Os formosos templos espalhados pelos quatro cantos
da urbe e o Templo Maior do deus sol ao centro com seu muro alto e suas
calçadas pavimentadas de pedras brancas, as quarenta torres encimadas de
construção sólida, as casas dos artesãos com seus vergéis de flores. O mercado, aonde frutas vindas de todos os
cantos do império, ouro, prata, pedras preciosas e animais exóticos, plumas de
todas as cores, os carregamentos das grandes canoas eram trocados e vendidos pelos ricos mercadores, ainda lá
permanecia intocado. As mercadorias sempre são carregadas
pelos escravos na lida da madrugada. Os servos desembarcam em silêncio os fardos das canoas
que aportam nos canais que circundam Tenochtitlan, a capital dos Mejicas. Tudo
estava como deveria ser, uma noite comum como tantas outras. Vigilante
Quetzcoatl, a Estrela da Manhã, faz seu milenar percurso no firmamento
anunciando o próximo alvorecer.
Suas visões noturnas já haviam custado caro para sua reputação.
Tinha sido relegado a uma posição inferior na linha de sucessão dos sacerdotes
dos templos. Fora enviado pelo Conselho a um templo menor nos arrabaldes da
cidade, as imagens de homens brancos destruidores e outros prodígios tinham
chegado aos ouvidos do Sacerdote Maior e do Conselho que chamaram de
invencionices sacrílegas, frutos de uma mente perturbada por maus espíritos e
foi advertido que caso não deixasse de divulgar essas mentiras seria enviado
junto com a família para servir de oferenda aos deuses nas festas do solstício.
Foi designado para oficiar no templo da Deusa
Aranha, a que tecia a teia cósmica que sustentava o Céu e era o caminho das
estrelas, da lua e do Deus Sol, Huitzilopochtli e de Quetzcoatl, a Serpente Emplumada em suas
marchas constantes. O pequeno templo dessa deusa arcana da era dos Toltecas, ou
mais antiga ainda, depende dos sacrifícios do Templo Maior para poder propiciar
suas oferendas e tem poucos adeptos, quase todos, artesãos da velha escola que
vão pedir inspiração para a Deusa na feitura de sua obras.
Quando chegam as oferendas ele e suas diligentes
escravas mais a principal, depois de fazerem as purificações de praxe com ervas
aromáticas no recinto, cortam os despojos vindos do Templo Maior com suas
laminas de obsidiana sobre a pedra sagrada para dividir aos crentes os pequenos
óbolos, as porções das carnes do sacrifício. Enquanto cortam as peles a esposa
principal, como sempre, reclama da sua condição de mulher de um sacerdote mal
visto pelo Conselho.
─ Você ainda insiste com essas heresias Totelpec ?
─ Já não chegam as punições que recebeste do Conselho?
─ Mas é minha obrigação trazer ao conhecimento do
Templo Maior a vontade do Deus.
─ Agora Quetzcoatl fala por sua boca? ─Teu orgulho
não apresenta limites, homem.
─ As visões se repetem eu querendo ou não, mulher.
Elas estão além da minha vontade.
─ Nunca o poder dos Mejicas foi tão imenso, Montezuma
recebe tributos de todas as tribos daqui até o outro lado do grande oceano,
onde o deus Sol declina para o mundo dos mortos. Nossos templos estão repletos
dos corações de valorosos guerreiros. Os currais em Azcapotzalco nunca estiveram
tão cheios de prisioneiros para os sacrifícios, as mulheres de nossos inimigos
pranteiam os filhos e maridos mortos nas batalhas. São demônios enganadores que
te perseguem com essas visões e podem
até mesmo levar um homem de bom senso como tu à loucura ou pior à total desgraça
─ reclama a mulher, enquanto corta os pedaços da carne do sacrifício que seriam
distribuídas na cerimonia noturna da consagração da deusa.
O aborrecimento da mulher tem sentido pensa o pobre
sacerdote. Ele precisa manter a família numerosa, as concubinas e os
filhos. Se fosse chamado pelos Sacerdotes do Conselho novamente poderia ser
condenado à morte por sacrilégio e os seus filhos destinados aos sacrifícios
nas calendas do primeiro mês quando são retirados corações de crianças pequenas
nos cimos dos montes em louvor aos deuses da chuva. A disciplina dos sacerdotes
é dura e mais dura ainda a disciplina do povo temeroso em cair na desgraça de
incorrer na ira de algum deus. O melhor é ficar de boca fechada.
Mas o Conselho andava preocupado com esses rumores ultimamente e eram consultados com frequencia pelo rei. Inumeráveis sinais, verdadeiros prodígios parecem
predizer dificuldades futuras para o Império. Durante os últimos anos muitos
são os vaticínios negados pelos sacerdotes que procuram não assustar o povo
comum. Mas Montezuma, rei com poder ilimitado, sabe deles e vive em permanente
desassossego buscando purificar-se através de vários rituais, inclusive de seu
próprio sangue, para tentar afastar aquele mal iminente que paira sobre todos.
Ocorrem incêndios impossíveis de apagar, cometas que passeiam sobre o céu
durante horas, e no espelho da garça encantada pode se ver refletido um céu
estrelado em pleno dia. Um pastor garante ter sido transportado pela águia a
uma caverna resplandecente onde foi recebido por um ser “comparado a qual
Montezuma não era nada” e outros anúncios similares que levam os sacerdotes a
exigir cada vez mais sacrifícios para trazer novamente o equilíbrio perdido do
universo mejica.
Após tentar afastar de si e de seu império a desgraça
iminente, Montezuma envia oferendas de peles humanas a Huemac, Deus da Morte, e
se oferece a viver em seu reino como um simples varredor, o deus se nega a
recebê-las e ainda censura o monarca :
– Tua
conduta é orgulhosa e de desprezo ao próximo.
Ele então perturbado se submete a um jejum de vinte
quatro dias. Não tendo a penitência o resultado esperado o rei tenta evadir-se
indo se esconder em uma pequena ilha. Um de seus ministros percebe a fuga e
corre em seu encalço e o trás de volta cabisbaixo ao palácio dando-lhe
conselhos morais e prometendo não contar nada se ele se conduzisse como deve um
imperador do mundo.
Montezuma decide então saber o que deve suceder e
resolve convocar todos os feiticeiros e adivinhos do reino para que revelem o
terrível destino. Como não podem dar respostas satisfatórias todos são enviados
a morte. Os astrólogos também são
acusados de traição por não terem conseguido ler nada nos signos das estrelas e
são mortos. Ordena-se então que qualquer
um que sonhe com o fim do império acorra ao palácio para contar seu sonho ao
rei. Foi quando os membros do Conselho de Sacerdotes recordaram-se dos sonhos
de Totelpec.
Durante um dia e uma noite emissários percorrem
toda Tenochtitlan como coletores de sonhos, o novo tributo imposto pelo
monarca. Um emissário encontra o templo da deusa Aranha e entrega a convocação
urgente do Conselho para um atônito Totelpec.
Devia seguir sem demora ao palácio para contar seus sonhos para
Montezuma. A mulher que, apesar de ranzinza, tinha real afeição pelo marido,
cai em prantos, antevendo a desgraça dessa notoriedade indesejada, pois todos
na cidade sabiam o que acontecia com quem não atendia as expectativas do
mandatário. Já adivinhava próxima a escravidão e a imolação de toda a família.
O percurso até o palácio é um calvário para
Totelpec, e com certeza sabe, ao final selará seu destino nas mãos do carrasco.
Sobe as escadas que levam aos aposentos do monarca com as pernas bambas.
Encontra no amplo salão o Conselho de Sacerdotes reunidos com suas vestimentas
monásticas mais ricas, os nobres mais importantes da corte e ao centro o
soberano. Montezuma está ricamente adornado, veste um manto incrustado com
joias de alto valor, na cabeça uma coroa dourada encimada com linda plumagem de
aves raras, nos pés sandálias atadas com tiras de couro trançado cobertas com
pedras preciosas. Está sentado em seu trono dourado e parece desconfortável,
quase em pânico. O que causa um terror ainda maior para o pobre sacerdote, pois
sabe que a corda sempre rompe em seu ponto mais fraco.
Sem maiores cerimônias é mandado contar seus sonhos
sobre o fim do império. Não adianta suas súplicas para que não levem a sério os
delírios de um pobre louco. Por fim resolve que é melhor contar a verdade, pois
nota o olhar contrafeito do rei que pode mandar matá-lo ali mesmo caso seja
contrariado. Conta do homem branco de barbas longas, fato incomum entre os
mejicas, dos estranhos animais, do fogo que sae de suas lanças, do poder do
trovão que carregam seus feiticeiros e sua força destruidora Conforme relata
cada detalhe sobre esses prodígios a expressão do monarca fica lívida, como se
suas piores expectativas ao final estão sendo reveladas. Ao terminar sua
exposição os sacerdotes do Templo Maior e os demais presentes discutem
acaloradamente as suas revelações, uns acreditam que são maus presságios,
outros desconfiam das intenções do pobre homem e sugerem que seja executado
imediatamente, com certeza não é boa a sua influência sobre o povo que pode
acreditar em tais delírios. Só Montezuma permanece quieto, pensativo, parece
acreditar nas palavras do pobre sacerdote, mas teme que os outros censurem sua
fraqueza. Não é o momento de transparecer insegurança.
Só os mais chegados sabem da presença do rei de
Tlaxcala na reunião, a vizinha cidadela inimiga. Há muito os mejicas necessitam
de cada vez mais guerreiros para os sacrifícios, e fica custoso traze-los de
grandes distâncias, de onde finda o império, normalmente chegam exaustos ou
moribundos e deixam de ser aptos para os rituais de sacrifico e o combate do herói
sobre a pedra do altar que determina o ápice do ritual antes da retirada do
coração do guerreiro vencido para oferenda ao deus sol. Então tinham
estabelecido um acordo secreto com os de Tlaxcala, uma guerra perpétua que se
desenrola em batalhas floreadas sucessivas, com um único objetivo, onde
guerreiros eram apressados para encher os currais e garantir os sacrifícios de
jovens fortes e cheios de energia. Em troca os mandatários de Tlaxcala recebem
valiosos presentes e a atenção e o respeito do monarca mejica que mantem
secreta relação de diplomacia com a nobreza inimiga.
O rei de Tlaxcala tudo escuta com atenção e logo
que permite o protocolo real se afasta com seus conselheiros em direção ao seu
reino exortando com ameaças os escravos da liteira que o transportam a irem com
toda a pressa. Tinha urgência de levar as novidades ao seu conselho para que
fossem tomadas as decisões necessárias e garantir a segurança do seu povo.
Montezuma não vendo nada de bom nos sonhos manda
executar todos que se apresentaram e foi
então o dia denominado como a “Matança dos Sonhadores”. Logo após a audiência
real Totelpec é despojado das vestes sacerdotais e jogado nas masmorras junto
com muitos outros no aguardo de sua hora final. Só mesmo a quantidade de
execuções tinha impedido que fosse morto de imediato. O cheiro de sangue seco,
que manchava as paredes da prisão, e o choro dos condenados causa profunda tristeza
ao sacerdote, que clama a Quetzcoatl uma morte clemente. Seu destino seria o
pior possível para um mejica, já que despojado de uma morte honrosa no campo de
batalha, nada de bom adivinhava sua vida no além-túmulo. Para seu povo só a
morte do guerreiro ou do herói sacrificado no templo levava à ressurreição do
espírito.
Desse dia em diante foram proibidos os presságios e
sonhos entre a população da cidade. O terror pesa até mesmo no mundo dos
espíritos. Montezuma está só em sua angústia indescritível. Envia soldados até
as regiões mais distantes do império para trazer a força, se necessário,
feiticeiros para substituir os que foram exterminados em sua ira. Esses adivinhos
estrangeiros declaram:
─ Logo chegará o que deve chegar - Mas quando o rei
pretende saber mais detalhes dos presságios, sortilégios mágicos os fazem
desaparecer prudentemente.
Chega ao palácio a notícia de um homem que conta
haver testemunhado um prodígio com seus próprios olhos:
─ Vi uma montanha que passeia de um lado para outro
do mar sem tocar a costa.
Montezuma manda aprisioná-lo imediatamente e envia
espiões para verificar a veracidade da informação. Quando seus enviados retornam
e fazem uma descrição exata da frota que haviam visto, ele baixa a cabeça sem
pronunciar uma palavra.
Antes disso, Totelpec recebe a vista do Sacerdote
Principal que ficara impressionado pela clareza do relato dos seus sonhos. Não
parecia certo que apesar de ter cumprido sua obrigação sacerdotal, mesmo assim
o rei tenha mandado executá-lo diz-lhe o poderoso sacerdote.
─ Não teria no geral preocupações dessa ordem
contigo ou com qualquer outro, mas os tempos estão mudando e devemos pensar na
compaixão ao próximo de vez em quando – Recitou o sacerdote em uma clara alusão
à Quetzcoatl. A religião dos sacrifícios humanos vinha sendo questionada por
muitos ultimamente. A velha ordem dos Toltecas, crentes no deus criador de
todas as coisas exigia ser restaurada e seu oposto, o insaciável deus sol
parecia já não poder mais garantir a sobrevivência do império. Nada mais
natural que o retorno dos fiéis às raízes primordiais da doutrina dos antigos
povoadores.
Totelpec, com um fio de esperança no coração,
permaneceu ajoelhado e contrito, como deveria ser a ocasião. O Sacerdote Maior
discorreu sobre essa inusitada compaixão, e sobre a fé no antigo deus tolteca cultuado
pelos seus avós integrantes do próprio clã, mas pouco cultuada entre os mejicas.
O superior acreditava ser um sinal divino e seria uma heresia permitir que o
homem que falava com a voz do deus fosse executado pelo real feitor. Maiores
desgraças poderiam advir para todos como uma vingança de Quetzcoatl em um
momento que já prenunciava dificuldades futuras.
Assim que foi liberto o sacerdote correu até sua
casa sendo recebido com gritos de satisfação da mulher, abraços dos filhos
saudosos e das escravas concubinas, todos tinham permanecido no templo orando
pela sua salvação. Mandou sua família reunir os pertences e enviou uma
solicitação para o Conselho permitir sua ida até seu povoado natal, pois,
mentiu, recebera notícias da morte de um parente e necessitava acompanhar seu
funeral e exéquias na condição sacerdotal. Para sua surpresa recebeu a
permissão, sinal de que não lhe queriam por perto.
A viagem durou uma lua inteira, e sua mulher
refeita do susto da possibilidade de perdê-lo não se esqueceu de admoestá-lo
durante toda a jornada:
─ Péssima ideia a tua de fugir como um ladrão da
capital, isso ainda vai atrair mais desgraças para todos na família – Que infelicidade
voltar para a vila onde a carne é escassa e vivem na maioria os avós e nada tem
para fazer lá a não ser contar estrelas do céu noturno.
Ela não queria perceber o que estava acontecendo ao
seu mundo, as mudanças radicais em suas vidas em função do esposo, o único
sonhador sobrevivente, e não podia aceitar as peças pregadas pelo destino, a
reclusão forçada em um sitio distante por causa das miragens dele
Quando chegam na vila todos os recebem com a
costumeira hospitalidade. Muitos querem saber as novidades. As poucas notícias
só chegam de outros lugares através dos relatos dos viajantes e forasteiros da
capital ou da costa, pois o povoado é pobre. As novas causam agora espanto para
os anciões. É como se o universo a volta estivesse desabando. Invasores
estrangeiros haviam desembarcado na costa e estavam arregimentando forças com
os povos submetidos pelos mejicas, seus tradicionais inimigos.
Os quatro chefes do Conselho de Tlaxcala decidem
dar passe livre para os invasores. Só Xicotencatl, o mais moço discute com o
conselho e previne sobre futuras desgraças. Esse chefe guerreiro é alto, de
ombros largos, robusto, com rosto alongado e tem uma personalidade firme que impõe
respeito entre os demais. Os de Tlaxcala não tem deferência especial pelos
Tenochlas a quem sempre devem tributos de jovens para o sacrifício. Nada melhor
que permitir a um opositor poderoso o enfrentamento com seus tradicionais inimigos.
Enfraquecer ambas as facções parece ser a melhor
estratégia decide o conselho. Entretanto é melhor que os invasores sejam
acossados e, portanto não negam a Xicotencatl a primazia do combate. É de boa
sabedoria testar as forças estrangeiras, pois dizem que os brancos são imortais
e seus cavalos causam profundo temor aos guerreiros mais experientes.
Xicotencatl confedera os jovens guerreiros sob suas divisas do branco e
colorado. Atacam os estrangeiros e cercam suas forças, um guerreiro consegue
desferir uma facada numa égua que cai morta, mas as perdas são grandes, perdem
oito capitães, filhos diletos dos velhos do conselho, e resolvem deixar o campo
de batalha. Continuam as escaramuças de dia e de noite, para atestar se é
verdade que no anoitecer os homens brancos perdem a força. Os invasores estrangeiros
perdem quarenta e cinco guerreiros, mas continuam seu avanço em direção a
capital do império provocando grandes perdas entre os defensores. O conselho
por fim impôs sua vontade e Xicotencatl encarregado a contragosto de ser o
embaixador da paz. A artimanha dos invasores para dividir os inimigos entre os
naturais prevalece. Afinal não era Tenochtitlan o opressor?
Tlaxcala se submete e se alia ao invasor e envia
seus guerreiros para lutar junto aos brancos. Oferecem-se esposas aos
conquistadores em aliança e Xicotencatl é encarregado de comandar as tropas
auxiliares.
A desgraça é total para Montezuma, mas pelo menos
agora pode respirar aliviado após anos de incerteza e medo. Ante a presença do
perigo cada vez mais iminente, se reanima, formula planos, dá ordens, e
desanuvia a expressão. Envia mensageiros
de confiança em direção aos invasores para tentar dissuadi-los com presentes de
continuar o avanço, mas como não obtém sucesso e temendo uma insurreição geral
do império resolve receber os estrangeiros na capital e presta juramento
pessoal de submissão ao grande rei que comanda esses exércitos em além mar. Seu
irmão Cuitlahuac adverte:
─ Peço a nossos deuses que não coloques em tua casa
a quem quer te colocar para fora dela e tomar o reino e talvez quando queira
remediar já não haja mais tempo.
Seus captores são homens estranhos que alguns dizem
ter um cheiro forte de pouco banhar-se e andam vestidos com mantas de metal que
os protegem das flechas dos inimigos e se acompanham de seus cães terríveis,
que os precedem na vanguarda, com os focinhos levantados e a baba escorrendo,
que destroçam as fileiras dos guerreiros desnudos, ou das estranhas montarias
que provocam o pânico das hostes nahuatl por onde passam. São guerreiros
aterrorizantes e não conhecem piedade alguma.
Certo dia chega um emissário com ordens para formar
uma esquadra de guerreiros e seguirem em segredo de imediato para Tenochtitlan.
Totelpec deixa de lado suas vestimentas de sacerdote e prepara as flechas de
ponta serrilhada com veneno, o escudo, e
o tacape com afiadas laminas de obsidiana na ponta, armas de familia que
mantinha guardadas na casa dos homens da vila de seus ancestrais.
─ É uma indignidade um sacerdote que renega a
própria fé para empunhar armas – Reclama a mulher e ainda vaticina sua morte
certa na mão dos bárbaros invasores, de como falta a ele a agilidade de um
jovem guerreiro para enfrentar aqueles que nem o mais forte nahuatl conseguia
vencer, mas seus inumeráveis rogos, suplicas e ameaças não surtem efeito algum
sobre a decisão do marido. Combina então com as concubinas tentar convence-lo
com artimanhas de sedução, carícias e prazeres indecorosos, mas não consegue
demover o marido de seu furor guerreiro na certa suicida.
Quando o grupo de guerra apronta-se, a esposa chega
carregada com uma mochila de palha trançada que prende na testa. Desta vez foi
ele que tenta de todas as formas demove-la de acompanha-lo, mas sem sucesso.
─ Imagina que vou deixa-lo seguir sozinho, com essa
sua cabeça sempre nas nuvens vai esquecer-se de fazer as refeições e se for
ferido quem irá curá-lo? ─ Já basta eu ter casado com um sacerdote de vestes
rotas, guerreiro de poucas flechas e plantada aqui nessa vila que parece a
pedra do sacrifício nunca vou saber quando vou virar viúva para poder arranjar
um marido mais jovem e com muitos escravos para o serviço com que possa
sustentar meus filhos como se deve uma mulher da minha nobre estirpe.
Ele desiste de tentar argumentar com a mulher que
sempre tem o veneno da serpente nas palavras e ela por fim junta-se às outras
mais jovens na retaguarda da coluna carregando as provisões às costas como é
costume entre os nauhatl. Os caminhos tortuosos entre as colinas seguem todos
para Tenochtitlan, em poucos dias de marcha forçada logo puderam avistar as
torres majestosas e os templos sagrados, os enormes palácios muito bem
decorados com seus pisos de pedras lavradas, os jardins com tanques de água
doce e seus canais ligados à lagoa de onde podiam desembarcar cargas das canoas
sem necessidade de saltar em terra os seus ocupantes e o deus sol resplandecia
sobre tudo que era muito branco e limpo.
Logo na chegada, dissimulados em meio a multidão de
mercadores, puderam ver de perto os invasores brancos e Totelpec teve a certeza
que seus sonhos não tinham sido em vão. As notícias que correm entre a
população não são nada boas. Montezuma permanece prisioneiro, algemado, vigiado
dia e noite. Recebe os súditos na presença dos carcereiros. Vai até seus
templos, mas sempre acompanhado por duzentos soldados estrangeiros armados com
suas espadas longas e compridas lanças de metal. Os seus pares, a nata do clã
imperial protesta, mas ele pede calma.
Na costa Quauhpopoca, a mando secreto de Montezuma
ataca a guarnição deixada pelo invasor na retaguarda e após uma dura batalha
vence a resistência dos estrangeiros, os seus caciques e aliados são mortos e
um dos estrangeiros, de barbas negras e crespas tem sua cabeça cortada para ser
enviada ao soberano na capital. Montezuma ao ver o despojo conquistado ao
inimigo se horroriza e impede que seja oferecida a cabeça aos deuses da cidade.
Cortez, como é chamado o chefe dos brancos, exige
castigo para os rebeldes. Quauhpopoca e seus seguidores e parentes são
queimados numa imensa fogueira feita com arcos e flechas, escudos e lanças do
arsenal do palácio real ante o olhar silencioso do povo, como um aviso de
advertência para Montezuma. Um por um os príncipes dignitários das cidades
vizinhas foram vencidos em armas e atraiçoados pelo seu rei, inclusive até seus
próprios parentes, que de bom grado ele entregou para serem mortos pelos
invasores.
Seis meses haviam transcorrido desde a chegada de
Cortez quando o chefe guerreiro recebe mensagem urgente da costa para encontrar
com os do seu povo que desembarcam suas hostes das entranhas das grandes canoas,
com asas brancas abertas que chegam desde Ixtlán, do outro lado do oceano dizem,
de onde vivia o grande rei. Deixa então Alvarado, seu capitão de confiança, para
comandar a cidade.
Pela manhã Totelpec veste seus trajes mais ricos de
sacerdote e segue para a grande pirâmide, o Templo Maior. Vai ser um dia especial
de devoção e antes de sair suplica para que a mulher permaneça em casa
escondida, longe dos olhos estrangeiros, teme que lhe roubem a esposa. Infâmia
que tem se tornado comum e que sempre fica impune quando se trata dos
guerreiros brancos.
Os sacerdotes desvelam o rosto da grande imagem do
deus Huitzilopochtli ainda muito cedo. Colocam-se em fila diante do ídolo e
iniciam o ritual do templo com incenso. Ora sobem..., ora baixam pelos degraus
da imensa pirâmide incensando-os. Todos os homens, muitos guerreiros jovens dos
clãs da águia e do jaguar estão a celebrar a cerimônia, dessa vez com o coração
apertado. O ritual começa com o estrondoso canto que se eleva do templo como
ondas sucessivas e a dança ritmada no areito empolga o povo que busca levantar
a moral ultrajada pelos invasores. Totelpec sente um calafrio na espinha, uma
memória perdida em sonho aflora e se torna de repente realidade, ele recorda
cada detalhe da revelação. Mas é tarde para alertar aos demais. Os estrangeiros
fecham as saídas do templo, atraídos pelas ricas vestimentas dos crentes e suas
pedrarias, ninguém mais pode sair. Cercam os dançarinos e os tocadores de
tamboriles. Um tocador de tamboril recebe uma espadada que lhe decepa um braço
e depois outra e observa em choque, seu dois membros cortados, antes de ter
decepada a cabeça que rola para longe. A confusão se estabelece, as pessoas
tentam fugir, procuram saídas, mas são apunhaladas, estocadas com lanças e
espadas, outros tentam salvar-se escalando os muros sem sucesso, uns poucos se
misturam aos mortos para passar despercebidos. Alguns conseguem, mas outros se
levantam antes do tempo e são perseguidos e decapitados. Totelpec se mantem
estático, logo quando pretendeu alertar aos demais um jovem guerreiro foi morto
ao seu lado e caiu sobre ele e então vários corpos sem vida se acumulam e
sangram suas feridas. Enquanto o massacre prossegue ele prende a respiração. O
sangue de tantos guerreiros escorre como um rio descendo os degraus do templo e
inundando suas entradas e o cheiro da morte já exala no ar do recinto sagrado.
Quando a cidade sai de seu torpor momentâneo
provocado pelo terror absoluto o povo resolve dar um basta na ocupação:
─ Às armas...às armas – ouve-se de todos os lados e
junta-se um mundaréu de gente com lanças, fundas e armas de todos os tipos. Os
bárbaros são obrigados a recuar, uma represa de ódio há muito tempo contida
pelos muitos desmandos e crueldades cometidas pelos intrusos rompe. Uma chuva
de pedras e flechas cai sobre eles que só não são imediatamente chacinados por
causa das malhas de ferro e couraças que lhes protegem. Mesmo assim muitos são
mortos graças a valentia dos guerreiros que se atiram contra os arcabuzes e
colubrinas e obrigam os invasores recuar em direção ao palácio de Montezuma,
onde em debandada se abrigam. O palácio é cercado pelo povo. Prisioneiros são
feitos nas ruas e nas casas onde se aboletam os invasores.
Totelpec se arrasta por baixo dos corpos e segue
como pode para sua casa, o corpo todo coberto do sangue dos guerreiros e
sacerdotes mortos e quando sua esposa o vê dá um grito de pavor. Ao perceber
que ele não tem nenhum ferimento ficou entre irritada e agradecida ao deus sol
que salvou mais uma vez o marido da morte certa. É ela quem trás as armas para
ele, o escudo com as marcas do clã do jaguar e o tacape com laminas de
obsidiana. A hora era de luta ou nunca mais teriam sossego. Seus temores
acabaram e o marido agora estava quieto. Seu corpo coberto de sangue seco era
sua pintura de guerra e causa terror a qualquer um. Parece um demônio vingador
recém-saído do mundo dos mortos.
Montezuma acompanhado de Itzcuauhtzin, governador
de Tlatelolco saem para tentar apaziguar o povo revoltado, mas pedras e flechas
voam em sua direção e o grito de guerra ecoa pela cidade. Não fosse a proteção
dos escudos dos invasores teriam sido mortos. Envia o irmão, Cuitlahuac, até
então prisioneiro no palácio, para tentar pacificar o povo, mas ele não cumpre
a missão. Assume o comando de sua gente e manda fechar o mercado para forçar a
fuga dos estrangeiros pela fome. Quatro dias depois da matança no templo os
corpos sem vida de Montezuma e Itzcuauhtzin são lançados para fora da casa
real, próximos ao muro onde estava esculpida uma pedra em formato de cágado que
chamavam Teoaioc.
Os invasores durante vinte e três dias permanecem
encerrados nas casas fortes da cidadela, de noite podem escutar os suplícios de
seus companheiros sendo imolados ao deus sol no Templo Maior. A forma covarde
que esses brancos peludos enfrentam a morte e negam o último combate do herói
na pedra causa desprezo aos guerreiros e alento ao povo sofrido, pois percebem
tratar-se apenas de homens comuns e sem honra. Nem sua carne serve para ser
consumida após o sacrifício.
Durante esses dias são cavados canais, alargados e
aprofundados outros, erguidas barreiras, impedindo a passagem dos inimigos
pelas ruas da cidade. As pedras e flechas caem como chuva contra os bárbaros,
mas seus canhões, arcabuzes, colubrinas e bestas dizimam os atacantes. Mesmo
com tal poderio, mas sem mantimentos frescos e sabedores do destino cruel que
lhes aguarda, caso sejam aprisionados, durante uma noite chuvosa eles intentam
uma fuga desesperada. Atam os cascos dos cavalos com trapos, todos em silêncio
e tentam a travessia pelas pontes que ligam à terra firme. O alarme é dado, e
muitos deles tentam atravessar o canal carregados com o rico botim, e se afogam,
até entupirem de corpos o curso de água, a ponto da retaguarda dos fugitivos atravessar
a seco sobre os corpos dos afogados. Os reféns levados pelos invasores, membros
da família real, foram todos mortos. O restante dos inimigos foi perseguido,
mas em campo aberto sempre levam vantagem no combate graças às armas de fogo e
armaduras. Eles por fim se refugiam em Tlaxcala, a cidade inimiga. Esses fatos
todos Totelpec testemunha lutando
bravamente entre as fileiras. Seu corpo ainda jovem se torna rijo com a vida
guerreira.
O alivio geral corre pela cidade. Acredita-se que
os inimigos nunca mais vão retornar. Os ídolos são recolocados em seus altares,
os tesouros roubados resgatados do canal, a cidade é reconstruída e limpa e
preces de agradecimento de milhares de vozes são ouvidas. Só Totelpec não anda
tranquilo. A mulher volta a ralhar com ele como sempre fazia e quer trazer a
família de volta à cidade. Ele não permite, o que provoca ainda mais a raiva da
mulher que reclamava a presença dos filhos. Logo a peste se instaura, o
hueycocoliztli, que enche os corpos das pessoas de feridas e leva a morte em
poucos dias. Foram sessenta dias funestos que levam centenas de mejicas à
morte, inclusive Cuitlahuac, o libertador. É eleito rei em seu lugar o sobrinho
de Montezuma, moço com vinte e poucos anos, seu nome é Cuauhtémoc, Águia que
Cai.
Passados quase um ano da expulsão dos estrangeiros
Totelpec desperta pela manhã e avista no grande lago várias naus de estranha
forma. Um calafrio passa por sua espinha e as memórias dos sonhos transbordam sem
controle. Sabia que os invasores não vão abrir mão da conquista definitiva. Os
defensores lutam setenta e cinco dias contra os atacantes que tem apoio dos
seus tradicionais inimigos da região. As canções de guerra e o som de tambores
por dias ensurdecem os combatentes de ambos os lados. Enquanto todos os homens
da cidade lutam como podem contra levas de hostes inimigas, balas de canhão e colubrina,
as mulheres preparam as flechas e pedras para municiarem arcos e fundas.
Totelpec vê quando sua mulher é atingida pelos fragmentos da bomba lançada
pelos barcos. Nos últimos dias ela já não mais reclama, mesmo quando eram
obrigados a comer pequenos lagartos que encontravam entre as pedras ou quando a
água boa de beber não mais existia. Seu nome, que não será nunca revelado, era
Yaretzie, ”Aquela que sempre será Querida”. Ele chora a morte da esposa
copiosamente e fica ali em meio ao fogo e as bombardas, sem ação. Aos poucos se
resigna pela fé de um futuro encontro, e apalpa com firmeza suas armas que
estão sempre a mão. Sua antiga vida sacerdotal agora era como um sonho
distante. O cheiro das panelas no fogo, as crianças brincando, suas concubinas
preparando o culto da noite, tudo isso tinha desvanecido num passado distante e
impossível. Junta-se ao grupo dos guerreiros do jaguar, cada vez mais reduzido,
e vai defender a cidadela, o último reduto que sobrara. Pessoas correm tentando
fugir dos dardos traiçoeiros, ele entra no bastião remanescente e olha pela
fresta da muralha, uma pequena abertura de uma pedra, imagem espectral,
imaginária. A luz ofuscante que cega de primeiro seu olho e vai aos poucos
arrefecendo o brilho, se abrindo e revela o desespero dos guerreiros contra as
multidões de inimigos que assomam, as explosões de seus corpos, as canoas de
guerra boiando impotentes destruídas
pelo fogo na laguna, Tenochtitlan com suas torres em ruínas, seu mundo feito em
pedaços, dura realidade do fim dos tempos dos mejicas.